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Círculo virtuoso aqui e acolá

Posted by on 03/09/2019

A exportação em larga escala dos produtos agrícolas americanos para pagar pela importação de produtos industriais causava a perda dos minerais incorporados a esses produtos agrícolas. E ao criar um interior rural escassamente povoado atrás de uma costa leste congestionada, o livre comércio fazia com que o retorno dos resíduos urbanos às áreas de plantio fosse custoso e não econômico. […] Um fluxo circular equilibrado entre a cidade e o campo poderia ser estabelecido e os resíduos urbanos sistematicamente restaurados à terra como fertilizante somente quando os produtos agrícolas não fossem mais exportados ou seus componentes minerais dilapidados em grandes cidades congestionadas como as grandes cidades portuárias estavam se tornando.

Trecho retirado do livro “America’s Protectionist Takeoff 1815-1914” do professor de economia da Universidade de Missouri Michael Hudson

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Acre é o quarto estado com o maior percentual de famílias vivendo na pobreza: 47,7%. Para cada vez mais gente a pecuária tem sido a alternativa econômica mais viável. Segundo o IBGE, entre 2004 e 2017, o rebanho bovino do estado aumentou 38%, enquanto a média nacional foi de um incremento de 4%. – A economia verde ainda não consegue dar segurança econômica para os mais pobres. Muitas vezes, isso faz com que elas acabem aderindo à pecuária para ter algum tipo de estabilidade – diz a professora do departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Acre (UFAC) Sabina Ribeiro.

Trecho retirado do artigo “Miséria é vista como estímulo ao uso indevido da terra”, publicado no jornal O Globo em 1º de setembro

    Prezados leitores, em meu último artigo, eu abordei o desafio proposto por alguns pensadores americanos à ideologia do livre comércio que então dominava as cabeças pensantes daquela época, ideologia esta que claramente favorecia a Inglaterra, a potência industrial do século XIX. Homens como Simon Patten, Peshine Smith e Henry Clay, dos quais eu tenho quase certeza que, assim como eu, nunca tinham ouvido falar, propuseram uma teoria do desenvolvimento interno da economia americana que deveria ter como uma de suas medidas práticas a imposição de tarifas alfandegárias aos produtos industrializados ingleses como forma de estimular a produção local. Neste artigo de hoje, abordarei um outro aspecto dessa teoria que é a preocupação ecológica, que nada tinha de xiita, mas ao contrário era extremamente pragmática, ao ponto de propor cálculos de quanto dinheiro os Estados Unidos perdiam com o livro comércio prejudicial ao meio ambiente.

    A relação nefasta entre livre comércio e danos ambientais consistia no fato de que as trocas entre a América e a Europa estimulavam a monocultura agrícola exportadora nos estados sulinos. À luz das então recentes descobertas sobre a química agrícola, isto é, nos anos de 1840, quando relatórios sobre o assunto eram publicados pelo órgão de patentes do Estados Unidos, a monocultura levava à exaustão do solo. Quer seja plantando fumo, algodão ou cana de açúcar, os grandes proprietários de terras que os exportavam para a Inglaterra em troca de bens industriais retiravam da terra seus nutrientes básicos sem repô-los. Aliás, faziam pior: perdiam esses minerais, essenciais para a fertilidade do solo, para sempre, pois eram embarcados para o outro lado do Atlântico, incorporados aos produtos agrícolas, para nunca mais voltarem. A comparação da receita obtida com a venda das commodities agrícolas com o prejuízo causado pela retirada definitiva dos minerais dos solos americanos, que os levava a tornar-se estéreis depois de alguns anos, mostrava que de um ponto de vista prático não valia a pena continuar nesse caminho, era preciso mudar de rota agrícola para quebrar o círculo vicioso de quanto mais exportação mais perdas econômicas.

    A chave para a geração de um círculo virtuoso era o plantio de uma variedade de produtos que atendessem o mercado interno, representado pelos moradores das cidades. A rotação de culturas permitiria a recuperação dos solos, a qual seria ainda reforçada pela utilização como fertilizante dos resíduos produzidos nas cidades pelos consumidores desses produtos. Para que isso fosse possível, a atividade agrícola deveria desenvolver-se perto das zonas urbanas, de forma que as respectivas economias pudessem complementar-se. O aumento da oferta interna de gêneros alimentícios baratearia o preço da comida para os trabalhadores, que poderiam assim alimentar-se melhor e produzir mais. A imposição de tarifas alfandegárias aos produtos industrializados por sua vez geraria uma receita para o Estado, o que lhe permitiria investir em infraestrutura de transportes para estimular a atividade econômica, ligando as diferentes regiões dos Estados Unidos e unificando assim o mercado interno. Ao facilitar os negócios colocando os agentes mais em contato, a atividade governamental acabaria também estimulando os investimentos dos capitalistas e a mecanização da produção, criando empregos mais qualificados para os trabalhadores, os quais ganhando e mais alimentando-se melhor poderiam aprimorar suas qualificações e suas necessidades, fazendo a roda da economia girar pela criação de novas demandas.

    Nesse sentido, a ideia de economia da escassez, representada por baixos salários, baixa qualificação, baixa produtividade e baixos investimentos, uma visão pessimista respaldada pelas visões apocalípticas de Malthus sobre o perigo do excedente populacional que não pudesse ser alimentado, era substituída pela ideia otimista de economia da abundância: nesta conjugavam-se altos investimentos, altos salários, alta qualificação e alta produtividade em prol da prosperidade geral, não só dos seres humanos como do ambiente em que ele estava inserido, ao menos no que diz respeito à saúde dos solos agrícolas.

    As condições atuais são outras, há outras maneiras de garantir a fertilidade do solo pelo uso de adubos químicos, mas a lição permanece a mesma. Como os pioneiros americanos que desafiaram os dogmas então em voga perceberam, crescimento é diferente de desenvolvimento. Os Estados sulistas que se dedicavam à monocultura geravam receitas de exportação, expandiam a área cultivada quando os solos se esgotavam, produziam mão de obra escrava em abundância viabilizando a formação de famílias negras. A longo prazo, como a história mostrou, estavam condenados ao fracasso, porque era um modelo que não criava o círculo virtuoso da prosperidade para todos, ainda que em níveis desiguais.

    Prezados leitores, de que lado o Brasil está nessa clássica dicotomia entre crescimento e desenvolvimento? Ou estamos aquém dela, em uma areia movediça da economia da escassez, em um eterno círculo vicioso? Considerando a situação atual da Amazônia, em que desmatar faz mais sentido econômico do que preservar, ao menos no curto prazo, como mostra o trecho citado acima, , o crescimento pífio do PIB no segundo trimestre, de 0,4% comparado ao primeiro trimestre de 2019, o déficit de 139 bilhões de reais previsto para o governo federal em 2019, os 38 milhões de brasileiros trabalhando na informalidade e portanto pouco produtivos, pois incapazes de investir na própria formação, a taxa de investimentos 24,8% menor do que aquela verificada antes de abril de 2014 (de acordo com a Abdib – Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base), parece que temos reunidos em nós os elementos fatais: baixos investimentos, baixos salários, baixa qualificação, baixa produtividade. Como sairmos disso? Como conseguirmos dinheiro para incentivar a agricultura verde na Amazônia de modo que preservar a mata se torne rentável para quem lá vive? Como colocar os milhões vivendo de bicos, de empregos precários, de volta à formalidade, às ocupações em que eles tenham a chance de melhorar suas qualificações? Qual será nosso coelho na cartola para inaugurar um novo círculo virtuoso de desenvolvimento?

    A reforma da previdência pode até economizar alguns bilhões para o governo, mas não acabou com as injustiças do sistema e neste cenário de alta informalidade em que vivemos ela pode acabar reforçando essa tendência de não regularização das relações de trabalho pela perda do estímulo à contribuição por parte dos trabalhadores autônomos, já que os benefícios serão menores e serão gozados por menor tempo. Resta-nos esperar que a reforma tributária prometida tenha algum efeito na quebra do círculo vicioso. Nesse ínterim, não nos esqueçamos da lição dos desenvolvimentistas americanos, que aliás recebeu o nome de Teoria dos Altos Salários: garantir condições boas de vida ao povo não é receita de socialismo desastroso mas de capitalismo sustentável.

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