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A democracia ou o clube dos ressentidos

Posted by on 24/04/2018

O apelo mais constante que ele fazia era ao ressentimento, a mais sustentável das emoções (pode durar toda uma vida e, sendo facilmente transferível, pode ser herdada). Barrera em seu romance certamente não pretende dizer que a Venezuela era uma espécie de paraíso antes da ascensão de Chávez, com sua diferença abissal entre os ricos ou mesmo moderadamente bem de vida e os pobres, ou que não havia nenhuma razão para alguém estar descontente. Mas o charlatanismo ressentido de Chávez, sua atitude de vendedor agressivo de soluções políticas e econômicas rápidas foi um desastre para o país do qual este levará várias gerações para se recuperar. 

Trecho retirado do artigo “Pensamento revolucionário” do médico e escritor inglês Theodore Dalrymple, publicado em 21 de abril

Eu cometi esse crime e eles não querem que eu cometa mais. É por conta desse crime que já tem uns dez processos contra mim. E se for por esses crimes, de colocar pobre na universidade, negro na universidade, pobre comer carne, pobre comprar carro, pobre viajar de avião, pobre fazer sua pequena agricultura, ser microempreendedor, ter sua casa própria. Se esse é o crime que eu cometi eu quero dizer que vou continuar sendo criminoso nesse país porque vou fazer muito mais. Vou fazer muito mais.

Trecho do discurso do ex-presidente Lula antes de ser preso em 8 de abril

Todas as vezes em que o Estado constatar que há problema grave de sub-representação de grupos minoritários – negros, mulheres -, esse dado estatístico deve ser levado em conta para a tomada de decisões, tendentes a corrigir essa anomalia.

Fala de Joaquim Barbosa, provável candidato à Presidência da República

Quadro pintado por Maria Auxiliadora da Silva (1935-1972), pintora negra brasileira autodidata

    Prezados leitores, as citações que abrem este artigo mostram que a prática democrática na América Latina tem se mostrado o palco da expressão dos nossos recalques e ressentimentos, fruto das nossas desigualdades atávicas. Para quem não sabe, dos 20 países com os índices Gini mais altos (e, portanto, mais desiguais), oito estão na América Latina e o resto está na África Subsaariana. De acordo com o Banco Mundial, o Brasil tinha um índice Gini de 51,3 em 2015, a Noruega de 27,5 e o da Venezuela em 2006 era de 46,9.

    Menciono os números referentes a Brasil e Venezuela porque os dois líderes latino-americanos que mais souberam trabalhar esses ressentimentos dos que não têm contra os que têm e vice-versa foram Hugo Chávez e Lula. O perfil da Venezuela no CIA Fact Book mostra como os investimentos sociais de Chávez reduziram a pobreza de 50% em 1999 para 27% em 2011. Bravo, diria Gleisi Hoffmann, a presidente do PT. Esse resultado seria realmente motivo para celebração se fosse sustentável, mas a ênfase de Chávez na confrontação, no nós contra eles, sejam eles as elites brancas venezuelanas ou o império americano, fez com que mais de um milhão de cidadãos qualificados deixassem a Venezuela rumo aos países europeus de seus antepassados, ao Canadá, à Colômbia e aos Estados Unidos.

    Felizmente essa fuga em massa de cérebros ainda não ocorreu no Brasil, e Lula no auge da sua popularidade nunca caiu na burrada de demitir 20.000 funcionários da estatal do petróleo, incluindo os valiosíssimos engenheiros, como fez Hugo Chávez em 2002-2003 para punir seus adversários por terem realizado uma greve na Petróleos de Venezuela S.A.. É verdade que atualmente, como mostra seu discurso de oito de abril, Lula tem explorado cada vez mais a verve do ressentimento para caracterizar sua posição de vítima de um Judiciário de conluio com as elites, mas o faz num momento em que tem poucas perspectivas de voltar ao poder. Para o bem do Brasil, as políticas sociais de Lula diminuíram a desigualdade de renda de uma maneira mais contemporizadora e malemolente, no estilo “lento, gradual e seguro” mais afeito à nossa herança portuguesa e africana, que garantiu que não houvesse uma reação violenta da classe média qualificada como houve na Venezuela. Digo que foi para o bem do Brasil, porque por mais que a classe média na América Latina queira ficar longe dos pretos, índios, mestiços e pobres, ruim com ela, pior sem ela. Sem mão de obra qualificada não há como fazer a economia girar.

    A saída para esse impasse talvez seja a proposta por Joaquim Barbosa, aumentar a participação dos negros nas universidades e nos cargos públicos por meio das cotas, de forma a mudar o perfil da classe média no Brasil e torná-la menos identificada com os interesses das elites, como tem ocorrido historicamente no Brasil, algo tão bem mostrado por Machado de Assis nos personagens de seus romances que gravitam em torno dos membros da elite, como Escobar e Capitu o fizeram em relação a Bentinho.  Mas esse caminho tem suas armadilhas, como mostra o sucesso de um candidato como Jair Bolsonaro, que já criticou os quilombolas de Eldorado Paulista por não fazerem nada nas terras que lhes foram concedidas. É provável que a denúncia da procuradora-geral da República, Raquel Dodge contra o ex-capitão do Exército, a quem ela acusa de crime de racismo contra quilombolas, indígenas, mulheres e LGBTs, permita a Bolsonaro colocar-se no papel de vítima de perseguição da esquerda. Dessa forma, se Joaquim Barbosa tentar explorar sua condição de negro para vender sua candidatura àqueles que se beneficiariam de cotas, ele talvez perca votos em uma classe média zelosa da sua posição longe da “senzala”.

    Se é inevitável que a democracia em países diversos e desiguais como o Brasil e a Venezuela funciona movida pelo ressentimento mútuo dos eleitores chamados a escolher aquele que será seu amigo no poder, então talvez a essa altura o ressentimento cuja exploração seja menos nociva em nosso país seja aquele que nutrimos contra os corruptos. Afinal, ao contrário do ressentimento dos que têm contra os que não têm, que pode levar a uma distribuição de renda contraproducente no longo prazo, como ocorreu na Venezuela, o pior efeito que o ressentimento contra os corruptos pode ter é o de levar a uma diminuição das garantias dos acusados e um reforço do direito penal do inimigo, o direito das transações penais, do toma lá dá cá entre promotores e acusados, aquele que foi aplicado para condenar Lula e que eu tentei humildemente explicar neste espaço há duas semanas. Por mais que a OAB esperneie contra as limitações colocadas à presunção da inocência, as eventuais injustiças cometidas pelo exercício desse novo direito penal não terão grande efeito sobre a grande maioria da população delinquente brasileira, que não terá grandes coisas para revelar em delações premiadas porque não faz parte da cúpula de grandes esquemas criminosos.

    Seja como for, esse clube de ressentidos de que é refém a democracia na América Latina não promete nos levar por um caminho de escolhas mais sensatas sobre o que fazer para resolver os problemas do Brasil. Seja o juiz implacável defensor das minorias oprimidas e da punição dos corruptos, seja o defensor da lei e da ordem para que o Brasil não vire a Venezuela, essa exploração de vinganças e recalques fará com que deixemos de lado a qualidade que para mim deveria ser essencial: quem tem mais capacidade de gerir, isto é de mobilizar recursos humanos e materiais em prol de um objetivo? Para responder a tal pergunta seria preciso confrontar o currículo dos respectivos candidatos para verificar quem mais obteve resultados nessa categoria. Tanto Barbosa quanto Bolsonaro receberiam nota zero, porque nunca administraram nada, nem loja de 1,99 muito menos uma prefeitura ou um governo estadual. Pelo andar da carruagem democrática, o ganhador das batatas será aquele que souber dar melhor expressão aos sentimentos descritos por Dalrymple em seu artigo sobre o caudilho venezuelano. Quem perde somos todos nós.

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