A Suprema Corte ela mesma é uma invenção moderna, criada no governo de Tony Blair. Seu nome engana – podendo levar-nos a confundi-la com a Suprema Corte dos Estados Unidos., que tem o poder de revogar decretos governamentais. Mas essa é a particularidade da Grã-Bretanha: não temos uma constituição escrita ou juízes que possam declarar as leis inconstitucionais. Aqui o Parlamento permanece supremo. Se ele não gostar daquilo que os juízes decidirem – nisso como em qualquer outro caso – ele pode anular uma decisão aprovando uma nova lei. Para citar as palavras sucintas e precisas que resumem a constituição da Grã-Bretanha, “O que a Rainha aprova no Parlamento é lei. ”
Trecho retirado do artigo intitulado “Brexit por um fio” do jornalista Joshua Rozenberg, publicado em 3 de dezembro
Nos Estados Unidos, ao contrário, assim como em toda democracia onde o poder legislativo ordinário sofre limitações legais, os eleitores não confinaram o exercício do poder soberano à eleição dos representantes, mas os submeteram a restrições legais. Aqui o eleitorado pode ser considerado um ‘poder legislativo extraordinário de última instância’ superior ao poder legislativo ordinário que é obrigado legalmente a respeitar as restrições constitucionais e, em caso de conflito, o Judiciário declarará o ato legislativo ordinário inválido. Aqui, então, o eleitorado é soberano e livre de todas as limitações legais…
Trecho retirado do livro “The Concept of Law”, do filósofo do direito britânico Herbert Lionel Adolphus Hart britânico (1907-1992)
Culpem os juízes e o Judiciário se os Estados Unidos forem atacados
Reação do Presidente americano, Donald Trump, à rejeição do recurso impetrado pelo Departamento de Justiça contra a liminar concedida pelo juiz James Robart, suspendendo o decreto presidencial que banira a concessão de vistos de entrada nos Estados Unidos para cidadãos de sete países muçulmanos.
Prezados leitores, quanto mais eu assisto, na qualidade de espectadora interessada, mas passiva, aos imbróglios políticos a que os Brasil e os Estados Unidos estão submetidos atualmente, fruto do sistema de triângulo amoroso escolhido por nós, do Novo Continente, mais admiro o sistema britânico de governo, que eu diria ser um belo pas de deux. Explicar-me-ei, falando primeiramente sobre os recentes desdobramentos da decisão de junho do ano passado pelos britânicos de sair da União Europeia.
Uma gerente de investimentos, Gina Miller, partidária da permanência da Grã-Bretanha na União Europeia, resolveu fazer uso do Judiciário para atrapalhar a festa dos vencedores. Ela argumentou em sua petição à Alta Corte da Grã-Bretanha que foi um ato do Parlamento de 1972 que colocou o país na União Europeia e, portanto, só um ato do Parlamento poderia tirar o país daquela organização. Diante da aceitação por aquele tribunal das alegações da autora, a primeira-ministra Teresa May impetrou recurso na Suprema Corte, que em 24 de janeiro estabeleceu que o Parlamento deveria realizar uma votação a respeito se dá ou não autorização ao governo para começar o processo de saída da Grã-Bretanha da EU. Pois bem, em 1º de fevereiro os membros da Câmara dos Comuns decidiram por 498 votos a favor e 114 contra a aprovar o projeto de lei que dá à primeira-ministra o poder para invocar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, e iniciar formalmente as negociações para a retirada. Pronto, os descontentes com o Brexit tiveram direito de manifestar-se, e melhor, o judiciário manifestou-se de maneira comedida, simplesmente passando a bola para o Parlamento. Todos os três poderes daquela monarquia saíram reafirmados, o que não significa que não haverá acirrados debates na Câmara dos Lordes e não haverá alterações no projeto antes que ele se transforme em lei. O importante é que o princípio basilar do sistema britânico continua intacto: o Parlamento é soberano. E melhor ainda: a vontade do povo, manifestada me 23 de junho de 2016, foi respeitada. Lindo, fino, elegante, sem vituperações, sem acusações mútuas. Tudo à altura da Regina Elizabeth II.
Do outro lado do Atlântico, a coisa muda de figura. Os Estados Unidos lançaram a moda e nós, em 1891 por intermédio, entre outros juristas, de Rui Barbosa, copiamos na nossa primeira Constituição Republicana. Temos uma Constituição escrita promulgada por um poder constituinte original que fez aquilo que quis quando se reuniu, e a tal Constituição o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem submeter-se. Mas, quando houver conflitos sobre se um ato de qualquer dos três poderes é constitucional ou não, quem resolve a questão e no jargão técnico “diz a lei”, isto é estabelece o que está de acordo com a Constituição e o que viola a Constituição, é o Judiciário. Na prática, isso significa que o órgão de cúpula do Judiciário tem a palavra final. Não haveria grandes problemas se os juízes mostrassem comedimento e se limitassem a uma interpretação literal do texto da Constituição, no caso dos Estados Unidos, cuja Carta Magna é enxuta. e se no caso brasileiro não tivéssemos uma constituição programática que dá ao juiz esse papel de executor das boas intenções dos constituintes de 1988. No entanto, em uma era de afirmação de direitos de grupos especiais, e de descrédito da classe política, como ocorre tanto nos Estados Unidos como no Brasil, o Judiciário têm sido usado como um cabo de guerra na disputa entre os grupos de interesse, cada um deles querendo dar um sentido diferente às palavras da Constituição escrita.
Não custa repetir aqui neste meu humilde espaço como o impeachment de Dilma Rousseff foi obtido pelos descontentes com sua reeleição em 2014 por meio do Judiciário e depois do Legislativo. E mais, o governo Dilma então enfraquecido foi inviabilizado de vez quando sua tentativa de nomear Lula ministro foi repelida pelo STF. Pois bem. Desde lá nós brasileiros só assistimos ao bateu levou incessante. Agora é a vez de Moreira Franco, nomeado ministro por Michel Temer, ser alvo de ação no STF porque ele é investigado na Lava Jato. Como Lula no ministério era mera blindagem contra processos judiciais em foros comuns e Moreira Franco no ministério de Temer não é? Mais uma vez o Judiciário vai decidir, independentemente do que a maioria do povo pensa sobre a legitimidade do atual mandatário do Brasil. Na década de 80, em plena década perdida, o noticiário era dominado pelas façanhas dos economistas, agora o protagonismo cabe aos órgãos da Justiça. O povo continua ao largo, chamado a apertar botões a cada dois anos, mas parece que nossa tarefa é simplesmente escolher os gladiadores que serão imolados no Coliseu de Brasília, vulgo STF.
A eleição de um populista para a Casa Branca também parece estar levando os Estados unidos por essa trilha de disputas intermináveis. Trump está tentando cumprir o que prometeu aos seus deploráveis eleitores: tornar as fronteiras mais seguras e criar empregos perdidos com a globalização. Mas a parcela daqueles que o detestam é grande e está se mobilizando por meio do Judiciário. O Aprendiz é um galo de briga e seus twitters bombásticos mostram que ele vai lutar até o fim. Qual será o fim? O total descrédito do Judiciário e do Legislativo se Trump conseguir afirmar seu poder? Ou o impeachment de Trump depois de inúteis batalhas em que ele será vencido pelos grupos de interesse? E se houver impeachment lá como aqui? Como ficam os eleitores que nele votaram? Será que se sentirão traídos pelos grupos que controlam o Judiciário e o Legislativo? Qual será sua reação? Lembrem-se que os Estados Unidos já passaram por uma guerra civil no final do século XIX…
Prezados leitores, sei que seria ingênuo importar o sistema britânico para nossas plagas, afinal a história, a cultura, depõem contra tal medida. No frigir dos ovos, no caso do Brasil, a maior parte do povo brasileiro se fosse escolher entre nossos políticos, envolvidos até o pescoço com a corrupção, e o Judiciário, escolheria este último, que justamente está revelando a simbiose sinistra entre grupos econômicos e nossa classe política. Quanto aos Estados Unidos, a coisa é diferente e mais momentosa, porque eles são um império nuclear e se o povo que elegeu Trump decidir ir às ruas, armados, para defender sua escolha soberana, o caldo pode entornar. De qualquer forma, é de lamentar que neste lado do Atlântico não possamos assistir à bela sincronia em que o Judiciário simplesmente diz ao Parlamento para cumprir sua obrigação e fazer leis e que se desenrole diariamente diante de nossos olhos os tapas e beijos trocados entre os três poderes. No que dará este triângulo amoroso das Américas saberemos em breve.