As ideologias chocam-se até mesmo nos tribunais, e aqueles cujas objeções a uma decisão são motivadas pela ideologia provavelmente não tentarão tornar mais fácil a fruição do conteúdo da decisão para aqueles que foram favorecidos por ela. […] No final das contas, tentar usar a lei para resolver disputas motivadas pela ideologia pode ser comparado a aplainar águas revoltas usando lixa, cujo único efeito é irritar os protagonistas.
Trecho retirado do artigo “Os tribunais americanos estimulam o conflito social” escrito pelo professor aposentado de filosofia e lógica John Kozy
O Brasil sempre foi um país intolerante e, de vários modos, autoritário. Construímos um conjunto de disfarces formais e meramente rituais para enfrentar o desconforto da intolerância e das injustiças que dela decorrem. Mas, nos momentos de crise e de tensão sociais, os disfarces derretem-se sob o calor da hora e ficamos nus diante do espelho. Nunca conseguimos construir uma verdadeira identidade nacional.
Trecho retirado do artigo “Pequena injustiças no calor da hora” escrito pelo sociólogo José de Souza Martins
Prezados três leitores que acompanham meu humilde blogue. Há algumas semanas eu falei de um livro “Three Felonies a Day” em que o autor fazia duras críticas às transações penais típicas do direito estadunidense, a começar pela confissão espontânea pela qual o acusado concorda em admitir a autoria de determinado crime e em fornecer informações às autoridades para que prossigam as investigações em troca de uma pena menor. Como nosso judiciário têm usado muito esse instituto para caçar os corruptos brasileiros, achei relevante mostrar o lado negro da delação premiada que, se é novidade para nós, para os americanos já é prática consagrada. Nesta semana, meu alvo é outro instituto, o direito baseado na jurisprudência, que está tornando-se prevalente no Brasil. Meu objetivo não é deter-me sobre ele em detalhes, mas explicar a crítica feita a ele para ilustrar um ponto.
No ensaio de John Kozy citado na abertura deste artigo, o alvo do filósofo americano não é a plea bargaining mas a tal da common law, isto é a utilização de decisões precedentes a respeito de casos semelhantes como respaldo para o juiz dizer o direito, em outras palavras dizer quem tem razão. Para Kozy, na prática o que o juiz faz é escolher aquele caso anterior que mais bem se adequa à sua própria ideologia, num processo que o autor chama de arbitrário e subjetivo. Em última análise, os Estados Unidos são um país “fraturado ideologicamente”, o que se reflete no Judiciário, que para o ensaísta acaba transformando-se em uma oligarquia travestida de “democracia esclarecida”. Oligarquia porque os valores que determinam as decisões acabam sendo os valores de um determinado grupo.
O ponto que quero abordar ao apresentar o lado negro da tomada de decisões com base em casos precedentes conforme visto por John Kozy é que ao importarmos institutos do direito americano para nosso direito acabamos importando tanto a eficácia e a celeridade da delação premiada para obter condenações, quanto o seu potencial para tornar-se arma de vingança política. De maneira análoga, ao importarmos a ideia da common law de que a fonte do direito não é somente a lei escrita, mas interpretações passadas dos juízes, podemos até conseguir uma maior estabilidade e uma maior celeridade nas decisões, já que casos semelhantes serão enquadrados em um padrão já estabelecido, mas ao mesmo tempo estamos escolhendo um determinado caminho decidido por um determinado grupo de juízes nas cortes superiores que tem lá seus valores. Esse modo de decidir, longe de transformar-se em unanimidade, acaba sujeito a disputas. Vou dar-lhes um exemplo prático para tornar meu palavrório teórico mais palatável.
Em 19 de março de 2016, Gilmar Mendes concedeu liminar suspendendo a nomeação de Lula para a Casa Civil, porque entendeu que isso era simplesmente uma manobra para atrapalhar as investigações sobre as atividades do ex-presidente a cargo da Justiça Federal e para conseguir foro privilegiado. Mendes inclusive ordenou a remessa dos autos do processo contra Lula, já denunciado pelo Ministério Público, de volta a Moro, que com certeza decretaria prisão preventiva se tivesse a oportunidade de fazê-lo. Pois bem, a Advocacia-Geral da União recorreu e o Ministro Teori Zavascki em 23 de março decidiu de maneira diferente, mandando que o processo fique com o STF e denunciando a divulgação dos grampos telefônicos feita por Sérgio Moro, juiz de primeira instância, como ilegal (aliás, meu trio de leitores deve lembrar-se que em 21 de março eu denunciei a besteira de Moro aqui neste meu obscuro blogue).
Os dois egrégios ministros alegaram em seus relatórios que se basearam na jurisprudência anterior do STF e no entanto decidiram de maneira diametralmente oposta: um queria o Lula nas mãos do Moro, o outro livrou o ex-futuro Chefe da Casa Civil das garras do juiz com fama de justiceiro que condena todos os que passam por seu crivo. Como lidar com tais diferenças? Será que elas ilustram à perfeição o aspecto negativo da jurisprudência apontado por John Kozy, que é ser uma ferramenta para o juiz dar um verniz de juridicidade e respeitabilidade a uma decisão que é exclusivamente baseada em suas predileções? Afinal, na mesma semana em que Gilmar decidiu contra Lula ele almoçou com José Serra e Armínio Fraga, dois dos mais autênticos representantes do tucanato. Seu “inimigo” na Corte Suprema, Teori Zavascki, acaba de rejeitar em 4 de abril duas ações impetradas pelo PSB e PSDB que alegam inconstitucional a nomeação de Lula para a Casa Civil. Teori valeu-se novamente da jurisprudência para embasar sua decisão favorável ao petista.
A impressão que fica para nós brasileiros é que a fratura ideológica que existe na sociedade brasileira também acaba ocorrendo no Judiciário, por mais que a argumentação jurídica tente esconder isso. Tanto é verdade que os favoráveis ao impeachment penduraram uma faixa no prédio do juiz catarinense com os dizeres “deixe o Moro trabalhar”. E é por isso que sob essa perspectiva, dizer que o impeachment é golpe não parece assim tão absurdo como quer fazer crer a maior parte da imprensa que vê todo esse processo como o exercício pleno da democracia, a prova cabal de que as instituições estão funcionando. É verdade que estamos seguindo todos os ritos ordenados pela Constituição e serão os representantes do povo e não os generais, como foi em 1964, quem decidirão. Por outro lado, aqueles que são favoráveis ao PT ficarão, caso o impeachment passe, com um gosto amargo na boca: gosto de termos presenciado, como afirmou o sociólogo Francisco de Oliveira, um dos fundadores do PT entrevistado pelo Globo em 3 de abril, um “jogo pesado” que não chegará a ser a tomada de poder à força pelos militares que ocorreu há 52 anos, mas será uma demonstração de que aqueles que sempre tiveram má vontade em relação ao PT agarraram-se à primeira oportunidade para derrubá-lo sem dó nem piedade, sem se importar com as consequências para o país de ter um governo federal sem ação, totalmente focado em sobreviver, e sem se importar com a incongruência de ter um processo de impeachment liderado entre outros por um indivíduo como Eduardo Cunha.
Prezados leitores, no final das contas, com impeachment ou sem impeachment, não teremos paz neste país, teremos protagonistas ainda mais irritados porque perderam a disputa e não se conformarão. As consequências de longo prazo para essa falta de consenso no Brasil, veremos nas eleições de 2018 e no sucesso ou não de alguma tentativa de reforma de envergadura, seja política, tributária ou outra, que porventura um novo governo tente fazer.