Há muitos anos eu assisti a um monólogo do Sérgio Viotti chamado As Idades do Homem em que ele tomava de empréstimo um poema de Shakespeare que consta da peça “As you Like it”que é intitulado “The Seven Ages of Man” em que o poeta descreve as fases da vida do homem desde a infância até a velhice. Uso esse título para falar não das sete mas das três idades do homem, na minha humilde visão.
Em primeiro lugar devo esclarecer que vou falar do homem ocidental, porque não conheço nada do homem oriental, se é que existe uma categoria que possa ser descrita como tal. E a razão da minha escolha é simples. No Brasil não estudamos nada a respeito da história antiga que não seja europeu, portanto seria leviano eu tentar falar de confucionismo, shamanismo ou qualquer outro conceito filosófico dos povos amarelos. Nós brasileiros somos um efeito colateral do expansionismo ocidental, não pertencemos ao núcleo duro do Ocidente, mas mesmo assim culturalmente, pelo menos a classe social a que pertenço, absorve aquilo que o Ocidente tem a oferecer, para o bem e para o mal.
Como segundo esclarecimento, devo ressalvar que não sou teóloga nem falo alemão como o Leonardo Boff, portanto perdoem meu amadorismo ao lidar com religião, mas ultimamente tenho pensado sobre a questão da ética e da justiça, que são também questões religiosas, e acho que está na hora deeu colocar isso no papel. Afinal, aqui no Monblatt falamos tanto sobre o mensalão, sobre a corrupção que grassa no país, sobre as mentiras que nos contam, que nada mais natural do que tentar entender de onde isso vem.
É minha firme convicção que o Homem Ocidental, pelo menos tal como ele é concebido teoricamente, mesmo que sua existência prática seja muito mais complexa, passou por três fases. Vou chamá-las para fins didáticos de o Homem Racional, o Homem Cristão e o Homem Técnico. O primeiro é fruto do caldo de cultura do mundo grego, o segundo da ascensão do cristianismo, e o terceiro do Iluminismo e do Capitalismo.
Não tenho condições aqui de fazer um percurso pela filosofia grega, mas para meus fins quero dizer que a razão dos gregos era uma razão ao mesmo tempo prática e subjetiva. Prática porque ela se prestava a revelar a realidade e subjetiva porque era fruto da iniciativa do homem de empreender esse esforço de conhecimento tanto do mundo exterior quanto de si mesmo. Sócrates falava dos seus daimones, sua vez interior que funcionava como uma bússola moral dizendo-lhe o que não fazer e dando-lhe a oportunidade de fazer escolhas morais. Sim, porque o homem racional grego é um animal político inserido na pólis, que toma decisões a respeito da vida da cidade e de sua vida com base em certos valores. Um homem é justo, na visão de Aristóteles, porque ele age conscientemente com justiça, decidindo no caso concreto como ser justo em vista das circunstâncias.
E isso requer um esforço mental e moral, mental de análise dos fatos e moral de como moldar os fatos em vista dos objetivos que se quer ver concretizados. Se o Ministro Ricardo Lewandowski estivesse fazendo justiça na Grécia, muito provavelmente ele não se ateria tanto ao aspecto técnico da insuficiência de provas para condenar os réus do mensalão. De fato, há o brocardo jurídicoquod non est in actis non est in mundo (“o que não está nos autos não está no mundo”), e ao seu pautar por ele o Ministro Relator está seguindo a estrita técnica que é ensinada nas faculdades de direito e o Código de Processo Penal. Mas para além da mera aplicação da lei, há a equidade aristotélica que requer que se pergunte: como posso fazer justiça neste caso? Como terei dado a cada um o que é seu de acordo com os critérios de proporção escolhidos pela sociedade? Como terei tirado de quem tem mais para dar a quem tem menos e tirado de quem tem menos para dar a quem tem mais? É justo não condenar criiminosos de colarinho branco que assaltam o erário, que estabelecem máfias de maneira acintosa, simplesmente porque eles fazem um serviço bem feito de não deixar rastros? O Estado de Direito, tão propalado pelos constituintes de 1988, pelos advogadosa torto e a direito, estará bem servido se a população perceber que os ricos têm mais simplesmente porque as provas ocntra eles nunca são cabais? Por acaso não é preciso calibrar a lei a depender do tipo de crime? Provas não cabais não quer dizer que não haja provas, mas simplesmente que o tipo de crime com que se está lidando é um crime praticado por pessoas finas, que sabem ser sutis. O grego levaria issso em conta para fazer justiça na prática.
Toda essa preocupação com a equidade, com a atuação do homem em sociedade, foi praticamente enterrada com o cristianismo. Para um dos pais da Igreja como Santo Agostinho, a vida na terra era um vale de lágrimas, em que a injustiça, a crueldade e a miséria estavam sempre presentes. A única saída era a contemplaçãodo paraíso, contemplação esta que tem um quê de platonismo no sentido do mundo ideal, mas que na prática acaba tornando o homem refém do status quo e incapaz de utilizar sua razão para fazer escolhas e mudar o mundo. O Homem Cristão é um homem amedrontado, que se preocupa com a salvação da sua alma mais do que qualquer outra coisa.
A terceira idade do homem vem como uma reação ao fatalismo cristão, e por isso é cheia de energia e otimismo. Os Iluministas acreditavam que a miséria e a ignorância podiam ser combatidos pela razão, que lançaria luz sobre as trevas e levaria a humanidade a ser feliz por se livrar de superstições milenares. Mas como parte do projeto de combate à religião, a razão secular iluminista é uma razão prática e objetiva, destinada a controlar a natureza, a criar meios que melhorassem a vida do homem e o permitissem se livrar do sofrimento. O aspecto moral das escolhas que fazemos com base em certos valores foi deixado absolutamente de lado, pois falar de valores, do certo e do errado, do justo e do injusto, era voltar ao maniqueísmo cristão. Daí ter surgido esse Homem Técnico, homem que usa a razão para conceber projetos fantásticos e para colocá-los em prática, mas que nunca se pergunta do efeito deles sobre os membros da sociedade.
Vimos essa insensibilidade moral tantas vezes no século XX. Mao Zedong, Stalin, Pol Pot, Hitler foram todos homens para quem dilemas morais eram preocupações infímas em vista da grandeza do que deveria ser colocado em prática. Qual era a importância de milhões de mortos, mutilados, traumatizados,em vista doReich de Mil Anos ou o comunismo ou a Grande Marcha para a Frente?. Pode-se argumentar que eram todos psicopatas e que não devemos tomar tais líderes políticos como parâmetros para estabelecer as características do homem moderno, fruto do Capitalismo e do Iluminismo. Mas, o que dizer dos engenheiros que participaram do Projeto Manhattan? De acordo com os valores do Homem Técnico eles apenas cumpriram suas tarefas e não podem ser responsabilizados pelo uso que foi feito do resultado do seu trabalho, a bomba atômica. Esta é a tragédia moderna: tal qual em uma linha de montagem em nossa sociedade as escolhas morais são feitas por um grupo e as escolhas técnicas por outro. É por isso que nossa especialidade é darmos desculpas à la Eichmann, que era apenas um cumpridor de ordens e não podia ser culpado pela morte dos judeus que ele despachou nos trens: o meu dever limita-se a cumprir minha pequena tarefa no grande esquema das coisas, se o produto do que faço causa algum mal, eu não posso ser responsabilizado, o uso é em outro departamento…
E assim caminha a humanidade, prezados leitores, e aqui deixo a indagação sobre qual será a próxima Idade do Homem, que suplantará este Homem Técnico. Quem sabe o desastre ambiental do total esgotamento dos recursos naturais inaugure uma nova era? A queda de Roma trouxe à luz o Homem Cristão, os grandes descobrimentos trouxeram o Homem Técnico, uma guerra nuclear entre Estados Unidos e seus muitos inimigos pode trazer grandes novidades. Com certeza nós não estaremos aqui para testemunhá-las.