[…] Mas caso sejamos honestos, o que raramente somos, devemos admitir que normalmente não conseguimos atender aos critérios de homem racional propostos por Bertrand Russell, isto é, aquele que decide no que crer na proporção exata das evidências a favor daquela crença. Nunca encontrei ninguém assim, e Russell certamente não era racional ele mesmo.
Trecho retirado do artigo “Isso não é a Verdade” do psiquiatra e escritor inglês Theodore Dalrymple
Até o momento do discurso em Harvard, eu tinha considerado de maneira inocente viver em um país onde uma pessoa poderia dizer aquilo que ela quisesse, sem lisonjas à sociedade em redor. Mas, na realidade, a democracia ela também espera ser elogiada. Tanto que eu havia jurado não “viver na mentira” na União Soviética [em um apelo lançado em Moscou no dia 12 de fevereiro de 1974, às vésperas de seu banimento – nota do organizador ] tudo ia bem – mas não viver na mentira nos Estados Unidos? Jamais!
Trecho retirado do prefácio escrito por Claude Durand à versão em livro do discurso pronunciado por Aleksandr Solzhenitsyn em Harvard em 1978
Prezados leitores, hoje confirmei, para minha satisfação pessoal, algo que já repeti ad nauseam neste espaço. A política hoje na era da comunicação e do pensamento instantâneo, resume-se a um embate entre inimigos entrincheirados que interpretam os fatos de acordo com sua própria agenda e que na maioria das vezes nem admitem a possibilidade de que a outra parte possa ter alguma razão. Talvez eu seja inocente e como apontou Theodore Dalrymple, o homem seja em todas as épocas e locais, incapaz de uma perfeita racionalidade. De qualquer forma tendo a considerar que em nossos tempos em que a política e os políticos são alvo de fotos desairosas, charges e piadas trocadas na internet, este viés não faz mais do que intensificar-se. Vou dar-lhes um exemplo concreto.
Almoçando com uma amiga minha americana perguntei-lhe de maneira despretensiosa se ela já tinha candidato a presidente, afinal sei que ela sempre manda o voto dela pelo correio. Ela respondeu-me que não sabia ainda, e fazendo uma alusão indireta a Hillary Clinton, que já foi sua escolha em eleições passadas, comentou o escândalo que atualmente desenrola-se nos Estados Unidos a respeito do uso que a então Secretária de Estado fez de um servidor particular para enviar e-mails não criptografados contendo informações confidenciais sobre os assuntos da pasta. O FBI está investigando o caso e apreendeu o servidor de Hillary, constatando que todos os e-mails haviam sido apagados. A candidata às primárias democratas do ano que vem tem dado respostas não convincentes sobre o porquê de ter decidido não usar um servidor público para enviar e-mails na qualidade de chefe da diplomacia americana no primeiro mandato de Obama, havendo suspeitas de que Hillary fazia isso para poder trocar favores de maneira escusa com possíveis doadores à fundação de seu marido.
Pois bem, o primeiro comentário de minha amiga sobre o episódio foi: “Os Republicanos estão insistindo nesse caso. Não dá para saber se tudo que estão falando é verdade.” Em seguida ela tentou defender Hillary dizendo que considerando a falta de segurança dos servidores públicos de e-mails ela fez bem em usar seu servidor privado e se ela apagou todos os e-mails antes de o pessoal do FBI chegar o fez em nome da segurança nacional. Em suma, uma eleitora de Hillary com graduação e mestrado em engenharia por uma grande universidade americana, que inclusive já trabalhou para o governo do seu país em projetos de mísseis, consegue achar n justificativas para um comportamento que se não foi criminoso, foi ao menos negligente, considerando a possibilidade de hackeamento de um servidor privado pela China ou pela Rússia. Tudo resume-se a uma conspiração dos inimigos da direita que estão explorando esse faux pas de Dona Hillary para sua vantagem política.
Não me espanto com tal reação de uma pessoa educada como minha amiga, pois se até um filósofo como Bertrand Russell, ao menos de acordo com Theodore Darlymple, não conseguia ser isento, que dirá nós, meros mortais? A diferença entre pessoas mais ou menos educadas é que as primeiras apegam-se a meias-verdades para justificar seus preconceitos, enquanto os menos letrados simplesmente vociferam seus impropérios contra os oponentes, atacando tanto o caráter do alvo quanto suas ideias políticas, como se as ideias “ruins” sempre fossem expressão de uma falha de caráter. A meia-verdade a que a engenheira eleitora de Clinton apega-se é que a bola fora da ex Secretária de Estado renderá dividendos políticos a quem não quer vê-la no Salão Oval da Casa Branca. Com certeza é um prato cheio para os republicanos, mas isso significa dizer que as investigações devem ser abortadas para não caírem nas mãos erradas ou que elas nunca chegarão à verdade dos fatos porque os inimigos de Hillary não permitirão que haja objetividade?
Obviamente vivemos o mesmo sectarismo no Brasil, e os mesmos dilemas colocam-se para nós. Na semana passada eu lancei dúvidas sobre a razoabilidade de colocar Dilma como foco da insatisfação de uma parcela da população. Não quero dizer com isso que considere as investigações da Lava-Jato uma conspiração do PSDB para derrubar um governo de esquerda legitimamente eleito. Não há dúvida de que há uma exploração matreira dos resultados das investigações pelos tucanos para impulsionar um processo de impeachment no Congresso, mas a esta altura tudo leva a crer que o PT fez uso de modos escusos de financiamento de suas campanhas para manter-se no poder a qualquer custo, inclusive o de fazer da Petrobrás uma casa da Mãe Joana.
Minha única preocupação é que resumir a pauta de reivindicações dos manifestantes ao “fora Dilma e o PT junto” não aborda questões mais profundas que estão na base dessa podridão a que assistimos: o regime presidencialista de coalizão, a representação distorcida dos Estados no Congresso Nacional, o desinteresse com que os brasileiros votam nos representantes do Legislativo, a própria obrigatoriedade do voto, o sistema proporcional de representação que leva à fragmentação do Congresso. Colocar o impeachment de Dilma como prioridade número um pode ser uma maneira de focar as atenções e as energias, mas caso a presidente seja defenestrada, eu temo que toda essa indignação será dispersada porque afinal aqueles que não gostam do PT terão tido sua “vingança” e isso lhes bastará.
Prezados leitores, devo confessar-lhes que sou um tanto pessimista quanto à possibilidade de nossa democracia conseguir ser mais do que uma cacofonia de pessoas que reivindicam direitos para si, como ela é agora. Cada vez mais prevalece o valor de que dividir é bom, de que reconhecer minorias, grupos específicos, direitos tais e tais contribui para a diversidade e para a democracia, mas não vejo ainda nós brasileiros, que já somos historicamente desiguais, fazendo a transição do reconhecimento das diferenças para o reconhecimento de algumas semelhanças e o estabelecimento de um denominador comum para que nosso sistema político seja sustentável tanto social quanto economicamente. Alguns poderão acusar-me de que tentar achar esse denominador comum é escamotear as injustiças e assim perpetuá-las. Pode ser, mas prefiro crer que achar pontos de contato pelo diálogo permitirão concessões mútuas e assim evitarão que vejamos no diferente apenas um famigerado conspirador. Sejamos honestos: criticar os outros é fácil, ainda mais quando os defeitos são óbvios, difícil é reconhecermos que temos tantos ou mais defeitos do que nossos opositores. Olhemo-nos no espelho!