Em junho de 2009 eu estava com fortes dores na coluna e no braço, eu tinha a sensação de que carregava uma tocha de fogo. No meio do expediente decidi ir ao pronto socorro de um conhecido hospital de São Paulo, afinal sou uma mulher conveniada, tenho plano de saúde Bradesco. Um ortopedista me atendeu e com um diagnóstico tirado do bolso mal me olhou e disse que eu sofria de estresse. A solução era não se preocupar e tomar um coquetel molotov de anti-inflamatórios e analgésicos, um dos produtos infalíveis do local. Pois bem tomei na veia e no meu derriere e foi como se não tivesse tomado nada.
Foi então que mandaram vir um neurologista, porque aparentemente meu caso era mais grave. Este médico era infinitamente melhor do que o outro, conversou comigo, examinou-me de verdade e me disse que provavelmente eu tinha hérnia de disco. Foi então que ele me propôs um “esquema”: para investigar a causa do meu mal eu concordaria em me internar e eles poderiam fazer uma ressonância magnética. “Vamos ferrar um pouco o convênio” disse-me o discípulo do velho Hipócrates: eu não poderia fazer a ressonância no pronto-socorro porque o convenio não cobriria, então era preciso se valer do artifício da internação.
E assim se fez. Não pude sair do hospital, tive que avisar em meu trabalho que não voltaria, e para resumir a história fiquei quatro dias internada, tomando derivados opiáceos, tendo sido diagnosticada, após a ressonância, com duas hérnias de disco cervicais e artrose na coluna. Não tenho queixas do hospital nem do médico, que me tratou muito bem, mimando-me com doses generosas de codeína, cloridrato de tramadol. Que paraíso! Quando voltei para casa, no dia do meu aniversário, e me vi privada de todos esses acepipes, eu caí em depressão, porque minha dor voltou toda. Que bons serviços meu plano de saúde tinha me proporcionado!
Por outro lado, essa experiência hospitalar levou-me a refletir sobre o que é o médico hoje em dia. Repito, não tenho queixas do neurologista que me atendeu, mas causou-me espanto como ele era ativo no oferecimento de serviços a mim, cliente/paciente. No dia seguinte ao diagnóstico da hérnia, ele trouxe a solução: uma operação pela qual eu colocaria vértebras de titânio: “Seu convênio não cobre essa operação aqui no hospital, mas depois vemos isso.” Diante da minha óbvia falta de entusiasmo com a cirurgia “dernier cri”, ele arrefeceu o ânimo e no último dia disse que era melhor eu tentar tratamento clínico: remédios, fisioterapia: “se você for a outro profissional ele falará a mesma coisa a você. Deveras competente esse médico (?), capaz de adaptar seu discurso de vendedor ao cliente. Lembro de um dia em que ele disse: “Preciso tomar cuidado com o que digo a você porque você é muito inteligente.” O fato é que até hoje não operei e nem pretendo operar, apesar de ainda sentir dores e de saber que nunca mais serei a mesma, pois meu pescocinho, tão fino quanto o da pobre Ana Bolena, já não me permite beber as últimas gotas de uma lata de refrigerante.
Toda essa história para chegar a conclusão de que nosso sistema de saúde, que está cada vez mais privatizado, é ineficiente, caro e injusto. Os médicos não cuidam mais de nossa saúde. Instruídos pelos próprios hospitais, que buscam cumprir metas financeiras, eles se transformaram em prestadores de serviços, particularmente os mais rentáveis e pior, muitas vezes ultrapassam o limite do razoável e se especializam em mutretas mil para arrancar dinheiro do convênio. As operadoras de saúde por sua vez, sabedoras que estão sendo fraudadas, repassam as perdas aos preços das mensalidades, e proletarizam o médico, transformando-o em um fator de produção, já que nada mais são do que empresas capitalistas que objetivam o lucro. A saída para os profissionais é se especializarem em serviços de maior valor agregado: cirurgias, procedimentos. A medicina clínica, feita de cuidados preventivos, de pequenas medidas graduais, mas de efeito mais duradouro, é deixada de lado por não permitir ferrar o convênio de maneira nenhuma, afinal, o médico só recebe uma quantia mínima pela consulta. Adeus médicos sanitaristas, clínicos gerais, vivam os cirurgiões!
O resultado da aplicação das regras capitalistas a um setor em que o bem deveria ser público e não poderia haver a apropriação privada, é esta dualidade. Alguns têm acesso a serviços sofisticados, mirabolantes, que pouco contribuem para sua real saúde, mas enchem os bolsos daqueles que os oferecem, porque a inutilidade da prestação leva a que os infelizes procurem novamente os médicos. Dores musculares? Tome um anti-inflamatório de última geração e quando já não fizer mais efeito o médico lhe oferecerá a mais recente patente. Anda macambúzio, com crise existencial? Um tarja preta lhe permitirá dormir e esquecer seus problemas, ainda que ao abrir o os olhos eles voltem a atormentar. Refluxo? Uma operação é perfeita, ainda que depois você nunca mais possa vomitar quando comer comida estragada. Vai ter neném? Uma cesariana é rápida, simples e para o médico é mais conveniente do que perder horas acompanhando contrações. Time is money! E os desconveniados? Bem, sabemos o que acontece com a maioria de otários que não têm plano de saúde e é obrigada a permanecer no SUS, não preciso me estender.
Provavelmente haverá médicos leitores do Montblatt e peço encarecidamente que não me entendam mal. Na minha opinião, os médicos são os últimos heróis trágicos do mundo moderno. Eles caíram do pedestal de terem uma profissão regulamentada, bem remunerada pela nobreza própria à atividade e se transformaram em assalariados na prática, embora sem o vínculo empregatício e os correspondentes direitos trabalhistas, das operadoras de saúde, arcando com riscos imensos, todos os dias, tendo que tomar decisões dificílimas no calor da refrega, sem que sejam adequadamente remunerados por isso. Mas é hora de recuperarem a dignidade perdida e exigirem em uníssono com toda a classe média e a classe pobre saúde publica e universal para todo mundo!