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Mitos

Posted by on 09/03/2015

     Ninguém explica a grandeza, o que se faz é tentar chegar a um acordo com ela.

     Robert Bresson, cineasta francês (1901-1999), diretor do filme Procès de Jeanne D’Arc de 1962

     Prezados leitores, na semana passada eu reclamei dos tempos modernos, do tudo por dinheiro, e confessei que me refugio em outras eras em que o espírito era a medida de todas as coisas. Utilizei o adjetivo mítico, porque na verdade seria muita ingenuidade acreditar que haja tempos históricos em que o poder não tenha sido a medida das coisas. A diferença é que o poder hoje é medido exclusivamente pelo dinheiro e antes que o capitalismo fosse alçado à condição de sistema econômico dominante, no Ocidente havia outras instâncias de poder, como a Igreja Católica.

     Hoje a pobre Igreja Católica é atacada de todos os lados, pelos evangélicos, pelos ateus, pelos agnósticos, pelos zens, pelos neobudistas e tantos outros que não mais querem pautar-se pela moral cristã. É senso comum que a Igreja Católica encontra-se desatualizada em relação aos direitos dos gays, à emancipação feminina, aos novos arranjos familiares. Mas não podemos nos esquecer do tempo em que a Igreja ungia reis e imperadores e excomungava aqueles que literalmente não rezavam pela sua cartilha. É desse tempo que que quero falar, em que a religião era onipresente na vida dos ocidentais. Eu chamo esse tempo de mítico não tanto pelo fato de ser perfeito, mas pelo fato de ser tão distante do nosso em termos de valores que ele parece irreal.

     Vou falar desse tempo não com a pretensão de ser uma historiadora, mas como uma pessoa que admira um personagem que personifica esta ideia de que o espírito é a medida de todas as coisas. Falo de Joana D’Arc (1412?-1431), camponesa nascida na região da Lorena na atual França, país então envolvido na Guerra dos Cem Anos com a Inglaterra. Aos 13 anos, ela já mostrava sinais de uma intensa devoção religiosa e começa a ouvir vozes que diziam a ela ir à França e libertar a cidade de Orleans, então cercada pelos ingleses. Ao redor dos 19 ou 20 anos ela foi atrás do rei Carlos VII em Chinon em março de 1429 e lá disse certas coisas ao soberano ainda não coroado, que tinha a fama ingrata de ser bastardo, que o convenceram de que ela tinha uma missão especial. Nunca saberemos o que ela disse a ele, pois jamais conseguiram retirar dela este segredo. A filha de Jacques D’Arc e Isabelle Romée ainda passou por verificação de virgindade e foi questionada por prelados da Igreja a respeito de sua fé católica.

     Tendo sido aprovada, o rei providenciou-lhe armadura, cavalo e um pequeno exército e lá foi a Virgem juramentada levantar o cerco à cidade de Orleans como ela havia prometido, e posteriormente levar Charfles para ser coroado em Reims em 17 de julho de 1429, após várias vitórias militares ao longo do caminho. Mas a partir deste episódio, que marca o ápice da carreira de Joana, começam as vicissitudes. A Virgem de Orleans queria continuar os esforços bélicos para expulsar os ingleses de vez, mas Charles VII era um grande poltrão e em vez de aproveitar o momento e continuar o ataque, quis descansar e negociar uma trégua com os ingleses, que aproveitaram a deixa para reorganizarem-se e partirem para a ofensiva. A grande vítima dessa virada foi Joana, capturada em maio de 1430 em Compiègne e vendida por 10.000 francos aos ingleses que a acusavam de ser uma “putain” e uma bruxa.

      Perdoem-me tantos detalhes leitores, mas são necessários para contextualizar o julgamento por um tribunal da Inquisição da camponesa analfabeta de Domremy, que havia aprendido a escrever seu nome durante sua fulgurante carreira militar. O inquisidor-chefe era Pierre Couchon, bispo de Beauvais, jurista, doutor em direito civil e direito canônico, assistido pelos mestres vindos da Universidade de Paris, que apoiava a causa inglesa. Pois bem, apesar desta discrepância de saberes, o fascinante deste processo, devidamente documentado por notários que tomaram os depoimentos das testemunhas e da própria acusada, é que Joana mostrou um maravilhoso bom senso, evitando todas as armadilhas filósoficas em que o ladino Couchon e seus asseclas quiseram pegá-la para poder acusá-la de herética. Vou dar-lhes dois exemplos, retirados do livro escrito pela historiadora francesa Régine Pernoud entitulado “ Jeanne D’Arc, par elle-même et par ses témoins” e traduzidos livremente por mim:

     Jean Beupère: Você sabe se está ungida da graça divina ?

     Joana D’ Arc: Se não estou, que Deus abençoe-me com sua graça, e se eu estou, que Deus me preserve assim. Eu seria a pessoa mais sofredora do mundo se eu soubesse não estar abençoada com a graça divina.

     Jean de La Fontaine: Deus odeia os ingleses?

     Joana D’ Arc: Sobre o amor ou o ódio que Deus tem pelos ingleses e sobre aquilo que ele faz à alma deles eu não sei nada; mas sei bem que eles serão expulsos da França, exceto aqueles que aqui morrerão, e que Deus dará a vitória aos franceses contra os ingleses (nota minha: ela disse que essa vitória ocorreria em menos de 7 anos e ela estava corretíssima)

      Pierre Couchon: Você jurará dizer a verdade sobre aquilo que lhe será perguntado a respeito de questões de fé das quais você saiba?

      Joana D’ Arc: Sobre o meu pai, minha mãe e tudo aquilo que eu fiz depois que cheguei à França, eu jurarei de bom grado, mas as revelações feitas a mim por Deus, não as falei sobre elas a ninguém e não as relatei a ninguém, a não ser a Charles, meu rei, e não as divulgarei mesmo que cortem minha cabeça. Isso vem das minhas visões e do meu conselheiro secreto, de não as revelar a ninguém. Nos próximos oito dias eu sabereu se devo divulgá-las.

      Além de não falar nada de absurdo, como pode-se observar nos exemplos acima, Joana ainda mostrava uma insolência que desconcertava os inquisidores:

      Pierre Couchon: Como estava São Miguel quando ele apareceu para você?

      Joana: Não o vi de coroa; e não sei nada das vestimentas dele.

      Pierre Couchon: Ele estava nu?

      Joana D’ Arc: Você acha que Deus não teria com que vesti-lo?

      Pierre Couchon: Ele tinha cabelos?

      Joana D’ Arc: Por que o cabelo haveria de ter sido cortado?

      Prezados leitores, tais respostas, cheias de prudência e sabedoria, mostram como é difícil explicar a trajetória de Joana simplesmente dizendo que ela era esquizofrênica porque tinha alucinações. Uma esquizofrência não teria discutido de igual para igual conceitos difíceis sobre o que é a verdade e sobre os desígnios de Deus como ela fez. Achar uma chave de explicação para um personagem tão complexo é algo inútil, mas de qualquer forma o mito é sempre apropriado em nome de algum interesse. Joana D’Arc, queimada viva em Rouen em 30 de maio de 1431 depois de ter sido condenada por Couchon simplesmente por vestir roupas masculinas, foi canonizada pela Igreja Católica em 1920. O partido de Marine Le Pen, Front National, comemora todos os anos a santa guerreira como símbolo da França profunda, da França que eles consideram autêntica, livre dos muçulmanos. A minha Joana é simplesmente uma mulher inteligente, obstinada e embuída de uma fé inabalável em sua missão, tão inabalável que morreu ardendo em chamas gritando o nome de Jesus. Em última análise cada indivíduo escolhe o quer de um mito. Façam vocês suas próprias escolhas se o personagem lhes interessar.

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