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uma pitada de sal

Posted by on 12/01/2015

É necessário continuar a rir da religião muçulmana? Para o hebdomadário satírico a resposta é sim, sem hesitação. “É preciso continuar até que o Islã seja tão banalizado quanto o catolicismo, afirma Charb com a  segurança de um pregador. “Nós ferimos os dois tabus que são Eros e Tânatos, mas ainda resta o tabu das religiões”, afirma o desenhista Luz. “Se alguém diz às religiões: “Vocês são intocáveis”, nós estamos mal”, adiciona Gérard Biard, redator-chefe.

Se há um assunto que cimenta a redação, é o anti-clericalismo. “O ataque contra todas as religiões é o que constitui nossa identidade, constata Gérard Biard. A redação consiste de anarquistas, ecologistas, comunistas, trotskistas, socialistas. Mas todo mundo concorda a respeito da religião. E acho que somos todos ateus.”

Entrevista publicada em 20 de setembro de 2012 no jornal Le Monde com os membros da equipe do jornal Charles Hebdo

     Prezados leitores, não é possível deixar de abordar o assunto da semana, o assassinato de 17 pessoas em ataques perpetrados, segundo a polícia francesa, por Chérif e Said Kouachi contra a redação do jornal satírico Charles Hebdo, e por Amedy Coulibaly contra um supermercado de produtos kosher, todos em Paris. Digo que não é possível porque as reações aos ataques foram muito grandes: milhões de pessoas em toda a França foram às ruas protestar no domingo dia 11, para não falar da hashtag Je suis Charlie no Twitter, camisetas com essa inscrição, e a publicação do jornal prometida para quarta-feira, dia 14 de janeiro, apesar de praticamente toda a redação do hebdomadário ter sido dizimada (Bernard Maris, George Wolinski, Jean Cabut, Charb e Tignus). Não é minha intenção aqui fazer perorações sobre a importância da liberdade de expressão, da relação sadia com a religião, do respeito às diferenças, isso é chover no molhado. O importante a enfatizar aqui é a prática de tais valores que todos os que se indignaram com a matança com certeza não se cansam de louvar.

     Para isso serei breve e simplesmente colocarei algumas perguntas que me vieram à mente ao longo desses últimos sete dias a respeito do episódio. Se ao final da leitura alguém tiver alguma dúvida sobre se há uma diferença entre o que as pessoas de bem, esclarecidas, liberais dizem, aí incluídos todos os governantes que compareceram ontem a Paris para prestar solidariedade aos franceses, e o que elas fazem, dar-me-ei por satisfeita. São elas (colocadas em blocos de acordo com o assunto):

     A liberdade de expressão é um direito humano absoluto? Aqueles que são ateus e consideram a religião como uma ideologia, como era o caso dos cartunistas do Charles Hebdo, têm sempre o direito de troçar das pessoas religiosas, para quem há determinados assuntos sagrados, que precisam permanecer intocáveis para que sua pureza seja preservada? O humorista pode ser desrespeitoso e vulgar para não perder a piada? Maomé de bumbum para cima fazendo um filme pornô ou Maomé usando camisinha é ofensivo ou libertário?

     Será que as mesmas pessoas que defendem a liberdade de expressão dos cartunistas massacrados, que eram obviamente de esquerda, defenderiam a liberdade de expressão de cartunistas massacrados que fossem de direita? Será que se chargistas que satirizassem os judeus, Israel, o holocausto, os gays, as mulheres e fossem assassinados seriam tão defendidos post-mortem como foram George Wolinski, Jean Cabut, Charb e Tignus? Será que não é mais fácil defender a liberdade de expressão quando concordamos com as ideias? Esse bloco de dúvidas parece ser pertinente considerando que em 2010 Maurice Sinet, caricaturista que trabalhou durante 16 anos no Charles Hebdo, obteve na justiça indenização de 40.000 euros por rompimento abusivo de contrato pelo fato de ter sido demitido após publicar uma charge em 2 de julho daquele ano que ironizava uma eventual conversão de Nicolas Sarkozy ao judaísmo:
“Ele acaba de declarar querer se converter ao judaísmo antes de casar-se com sua noiva, judia, herdeira dos fundadores da Darty. Ele vai se dar bem na vida, o pequeno!”. E para citar um caso brasileiro, tenho certeza que muitos que se revoltaram contra a tentativa de calar as críticas ao Islã assinaram abaixo-assinado na internet para cassarem Jair Bolsonaro, o deputado federal pelo Rio de Janeiro que é machista, defensor da ditadura e é contra o homossexualismo. Por acaso Bolsonaro não tem tanto direito de atacar verbalmente gays, mulheres e esquerdistas em geral quanto os caricaturistas têm de atacar os muçulmanos? Ou é diferente? E por que é diferente? Porque mulheres, gays e minorias em geral são intocáveis de acordo com nossos valores liberais, ao passo que os muçulmanos retrógrados, ridiculamente fanáticos por religião, degoladores de inocentes no Oriente Médio são um alvo permitido? Se isso for verdade, se em nossa sociedade dita libertária rir sobre certas coisas é impensável, está fora de cogitação, isso significa que o nosso humor não tem nada de livre e é ideológico, assim como a religião denunciada por Jean Cabut como uma ideologia como outra qualquer.

   Outras coisas deixaram-me perplexa, além da inconsistência dos nossos valores esclarecidos, iluminados. Por que todos os terroristas foram mortos? Por que a polícia francesa não os prendeu para que pudessem ser interrogados e explicassem o que houve, se tiveram ajuda,  etc? Não seria possível a liberação dos reféns apenas atirando nos criminosos para os tirarem de ação? Será que a morte deles ajuda o governo francês a construir sua própria narrativa dos fatos, incontestável pela versão da parte contrária? Será que os corpos de Chérif, Said e Amedy vão ser jogados ao mar, sem enterro, sem ritual fúnebre, nada, como os americanos disseram que fizeram com Osama Bin Laden (há histórias de que Osama teria morrido uma década antes de insuficiência renal)? Será que haverá uma investigação a fundo do caso ou o governo francês dará sua versão de como ocorreram as 20 mortes e todos devem dar-se satisfeitos com ela? Será que esse episódio brutal terá para os franceses o mesmo efeito que o 11 de setembro para os americanos, isto é um maior controle do Estado sobre os cidadãos, sob a justificativa de necessidades de segurança? Como conciliar, em um momento de medo como esse, a liberdade e a segurança? Será que os acontecimentos de quarta-feira dia 7 e quinta-feira dia 8 de janeiro serão usados como uma boa razão para que os países ocidentais intensifiquem suas campanhas militares na Síria, no Afeganistão, no Yemen e outros países muçulmanos no Oriente Médio e África?

    Prezados leitores, algumas dessas minhas humildes perguntas serão respondidas com o desenrolar dos fatos, outras são dilemas filosóficos cuja solução depende das premissas de cada um, isto é dos seus valores básicos, e por isso têm resposta aberta. Só quis tentar mostrar algumas nuances do embate liberdade de expressão versus obscurantismo que a emoção e a simpatia com as vítimas e seus familiares podem apagar. Apesar das várias pulgas na orelha que tenho, é sempre uma lástima ver pessoas talentosas irem embora assim de maneira estúpida, quando teriam ainda longos anos de vida produtiva, seja fazendo as pessoas rirem, seja fazendo-as pensarem. Tignus tinha quatro filhos pequenos, Elsa Cayat, psiquiatra, psicóloga e colunista do jornal também morta dia 7 tinha uma filha, assim como George Wolinski. Eu particularmente não acho que nada de bom advirá dessa carnificina, apesar de todos os hashtags, instagrams e comentários no Facebook: a iniciativa da ação ficará com o Estado e as organizações supranacionais que utilizarão os ataques para reforçar seu poder sobre a vida das pessoas. Enfim, mais uma fonte de medo para nossa sociedade de risco.

    Espero ter adicionado uma pitada de sal à versão edulcorada que a imprensa está nos transmitindo.

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