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Querelas do Brasil

Posted by on 09/12/2014

O inegável sucesso do Ocidente no plano econômico não é forçosamente exportável tal qual: não é sua realidade que se deve contestar, mas sua pretensão ao universalismo

Trecho retirado do livro “Nos Confins do Direito” do professor de antropologia jurídica e história do direito Norbert Rouland

O Brasil, não conhece o Brasil

O Brasil, nunca foi ao Brasil

Trecho da música Querelas do Brasil, de Aldir Blanc

América Latina precisa de novo caminho para crescer

Título de um artigo publicado no jornal O Globo de 7 de dezembro sobre o esgotamento do modelo de desenvolvimento adotado na região no início dos anos 2000

     Prezados leitores, nesta última sexta-feira vivenciei uma experiência antropológica, isto é de observação de uma determinada comunidade. Não foi nenhum trabalho de campo para pesquisa acadêmica, foi simplesmente uma ida ao interior de São Paulo para participar de uma ação de cidadania corporativa da empresa em que trabalho. Eu me voluntariei para nela estar e lá fui eu, em uma van, com três outras colegas de firma, para participarmos da formatura de adolescentes carentes que concluíram um curso patrocinado em conjunto com uma universidade pública. Não darei nomes aqui porque evito falar da minha persona corporativa para ficar livre de constrangimentos.

        A festa teve duração de três horas, e incluía a concessão do cobiçado prêmio aos dois melhores alunos: uma bolsa de estudos para cursar o ensino médio em um colégio particular da cidade. Esse é o ponto culminante porque há grande expectativa para saber quem vai ganhar. Neste ano foram duas meninas, e as respectivas famílias foram chamadas à frente. São pessoas muito pobres, o que se nota pelas roupas e pela incapacidade de falar de maneira articulada para fazer um agradecimento. Há também um outro detalhe: é um universo predominantemente feminino: veem-se irmãs, mães, avós, mas raramente veem-se pais, maridos. Reparei em muitas mães novas, com 20 anos no máximo, com seus filhos no colo, mas quase todas acompanhadas de outras mulheres. Pode ser que os homens estivessem trabalhando, e não puderam faltar ao trabalho, afinal o evento foi à tarde, mas suspeito que em muitos casos a ausência de figura masculina reflete o fato de as famíliasterem como chefe a mulher.

         Para falar a verdade, há outros momentos importantes, talvez até mais cruciais do que a netrega das duas bolsas de estudo. Há o sorteio dos presentes de Natal: fogão, tanquinho, equipamento para fazer chapinha, secador elétrico, liquidificador, batedeira, jogo de toalhas, celular. Ainda tenho na minha mente a cara de felicidade da mãe de um dos alunos do programa que ganhou um tanquinho: ela mexia-se toda, requebrava-se, excitada.No último ato da festa há um grande alvoroço também: a distribuição de lembranças de Natal a todas as crianças: um panetone e uma mochila, comprados pela minha empresa, embalados em pacotes de presente com a etiqueta corporativa. Fomos nós os funcionários quem distribuímos, sempre fotografados pelo profissional especialmente contratado pela firma para registrar uma demonstração tão cabal de responsabilidade social. A distribuição é sempre confusa, porque as crianças ficam ansiosas para pegar o seu panetone e mochila. Digo sempre porque eu participei da festa no ano passado e certas coisas se repetem.

     Todos esses detalhes que dei até agora servem para que eu chegue ao momento das minhasobservações antropológicas, de alguém que tenta ver tudo aquilo com um olhar objetivo. Certas coisas chamaram minha atenção. Em primeiro lugar, as escolhas musicais foram em sua maioria retiradas do cancioneiro americano: músicas dos dos anos 60, 70, funk, hip hop. É claro que houve canções brasileiras, mas eu esperava que em um programa patrocinado por uma universidade pública com finalidade educativa houvesse uma tentativa de fugir da mesmice e cultivar gostos alternativos nas crianças. Doce ilusão: quando da entrega da bolsa de estudos, tocaram “We are the Champions” do grupo britânico Queens e em um vídeo especialmente preparado pelas crianças para louvarem sua participação no curso elas cantaram um funk.

         Algusn acusar-me-ão de ser partidária da teoria de Aldo Rebelo, que um dia quis proibir o uso de expressões em inglês em nossa língua. Pode ser que insistir em Tom Jobim, Villa Lobos, Pixinguinha, Noel Rosa para crianças que ouvem ritmos importados o tempo todo seja fictício, dar murro em ponta de faca. Mas minha segunda observação antropológicaexplica minha tristeza em relação às escolhas musicais dos professores e a ideia que quero defender neste artigo. Impressionei-me com a quantidade de pessoas com smartphones naquele recinto, pessoas realmente pobres e que no entanto dão-se ao luxo de adquirir, provavelmente em 20 suaves prestaçõesmensais na Magazine Luiza ou nas Casas Bahia, um dos símbolos mais vistosos da modernidade.Jovens mães solteiras, empregadas domésticas, todas com celulares que tiram fotos e que puderam registrar toda a festa.

          Neste momento faço a pergunta: será caso de regozijarmo-nos ou entristecermo-nos com o fato de que pessoas com tantas outras carências não resolvidas, em termos de educação, bons empregos, estrutura familiar, poderem ter acesso a aparelhos eletrônicos fabricados por empresas multinacionais?A minha resposta, e ela está sujeita a críticas, é que fica evidente por esse detalhe que nossa modernização é parcial, sempre realizada na superfície,mas que raramente chega ao fundo. Nós no Brasil conseguimos nos últimos anos aumentar exponencialmente o acesso ao crédito, o que impulsionou o consumo e o crescimento econômico, a ascensão da nova classe média, a diminuição da pobreza, mas o mais difícil, que é melhorar a qualidade de vida como um todo,além do consumo, ainda precisa ser feito.

          Minha segunda pergunta é: teremos fôlego? De acordo com o FMI, a América Latina precisa achar outra receita para fazer o bolo crescer: a alta prolongada do preço das commodities e o financiamento abundante a custo baixo são coisas do passado e não voltam mais. É preciso investir em inovação, produtividade, competitividade, enfim o velho desafio desempre, que nunca conseguimos enfrentar realmente para valer: darmos um salto de qualidade e deixarmos de desempenhar o papel tradicional de fornecedores de produtos de pouco valor agregado. Do contrário, a previsão é que chafurdaremos em crescimentos pífios do PIB. Para este ano prevê-se para a América Latinacrescimento de 1,3% e para 2015 2,2%.

          Enfim,prezados leitores, querelas da América Latina e do Brasil.

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