llCivilização é a soma total de todas aquelas atividades que permitem aos homens transcenderem a mera existência biológica e buscar uma vida mais rica do ponto de vista mental, espiritual, estético e material. […] O primeiro requisito da civilização é que os homens estejam dispostos a reprimir seus instintos e apetites mais básicos: a incapacidade de fazer isso os torna, devido a sua inteligência, bem piores que as bestas selvagens.
Trecho retirado do livro “Our Culture, What’s Left of It – The Mandarins and the Masses” do psiquiatra e escritor ingles Theodore Dalrymple
Em maio, Putin promulgou uma lei que proíbe o uso de obscenidades e grosserias em espaços públicos como meios de comunicação, teatro, filmes, peças, livros, concertos e obras de arte. Cabe a umacomissão de especialistas determinar o que é ou não um palavrão ou gesto obsceno.
Trecho retirado do artigo “Críticos calados à moda russa” publicado no jornal O Globo de 23 de novembro
Prezados leitores, como já deixo claro em minha apresentação pessoal na página inicial do meu site, eu sou uma reacionária, e todo reacionário sente um mal estar no mundo moderno. Infelizmente este meu mal-estar renova-se cotidianamente: a cada vez que estou no metrô e ouço grupos de adolescentes que fazem uma algazarra danada, atracam-se como se estivessem brigando, gritam como macacos assustando as pessoas ao redor que acham que alguma coisa séria está acontecendo, e no geral agem como se estivessem na casa deles, como se pudessem fazer qualquer coisa em qualquer lugar porque estão exercendo o seu direito de expressão da individualidade ou coisa do gênero; a cada vez que vejo pessoas obcecadas em tirar fotos para serem publicadas no Facebook, como se a foto em si seja mais importante do que desfrutar o momento.
Minha malaise foi levada ao paroxismo na última eleição presidencial, que não passou de uma partida de futebol com ataques mútuos das torcidas organizadas por meio de piadas, notícias falsas, montagens de fotos desabonadoras dos candidatos veiculadas na internet. No sábado à noite, ao voltar de uma peça de teatro, ouvi de um pedestre a seguinte frase: “vou dar meu pau para ele chupar com Nutrella”. O que me chocou foi que a pessoa não estava falando aquilo em um momento de raiva, o tom de sua voz mostrava que aquele tipo de observação fazia parte do seu vocabulário cotidiano.
Não quero com isso dar-me ares de ser um ser moralmente superior. Definitivamente não sou, e muitas vezes eu deixo de pedir desculpas por um erro cometido porque fui incapaz de reconhecê-lo a tempo. O que me consola é que tenho um certo conjunto de princípios que eu tento seguir em relação aos quais comparo as atitudes que tomo em relação às pessoas, para que eu possa fazer correções de rumo.Eu também tenho outra fonte de consolo,de natureza intelectual. Leio aquilo que escrevem pessoas que compartilham comigo esse mesmo desconforto em relação à modernidade. Quero neste artigo destacar um autor em particular, citaod no início, Theodore Dalrymple, que inclusive já foi entrevistado nas páginas amarelas da Revista Veja.
Dalrymple atuou como médico psiquiatra em prisões inglesas durante muitos anos e esse contato com os estratosmais baixos da população o leva a conclusões pessimistas. Os valores da civilização ocidental, calcados basicamente no cristianismo, têm sido solapados pelas elites culturais, pela intelligentsia que se dedica a atacar tudo aquilo que a civilização do macho branco representa em termos de exploração de minorias. O importante para os intelectualmente corretos é desconstruir tudo, denunciar as noções tradicionais do que é belo, do que é certo e errado, enfim relativizarqualquer padrão em prol do direito inalienável do indivíduo de se expressar e de se comportar de acordo com suas próprias inclinações e sua própria visão de mundo, tão válida quanto qualquer outra..
Mas qual a relação entre presidiários e a intelligentsia que denuncia a civilização ocidental como opressora das mulheres, dos gays, dos não brancos?Para Dalrymple, esse desmantelamento dospilares da sociedade tem consequências nefastas sobre as pessoas mais vulneráveis. De fato, se para um membro da elite essa desconstrução não significa nadamuito além de louvara diversidadee ser politicamente correto, para as classes mais baixas os efeitos são be mais concretos. Neste último caso, desconstruir não é uma veleidade intelectual, mas uma prática cotidiana de descaso com valores tradicionais como a família, o respeito ao próximo, o senso do dever. Isso tudo foi jogado às favas como algo ultrapassado enovos arranjos foram colocados no lugar: casamentos (ou ajuntamentos) em série, busca incessante do prazer (leia-se drogas), violência, crimes. Os holligans do futebol, os baderneiros que saqueiam lojas e queimam carros nas cidades inglesas, os drogados são, na visão de Dalrymple,a manifestação no andar de baixo de um esforço sistemático iniciado no andar de cima de destruir pedaço por pedaço do edifício chamado civilização. Uma vez tendo sido quebrados todos os blocos de concreto ficará difícil reconstruir o patrimônio acumulado durante séculos e séculos de esforços.
Esse é o motivo do pessimismo dos reacionários. Os progressistas assumem que a civilização é algo que está aí, consolidado, que tende sempre a melhorar, mas ela não é. As regras de convivência social, os padrões morais, culturais e estéticos, quando questionados como vêm sendo deixam um vazio que custa a ser preenchido. Nós nos espantamos com a violência na política e nos estádios, com a corrupção generalizada, fruto do culto desenfreado ao dinheiro, com a desfaçatezde líderes políticos que mentem para manter-se no poder, mas ao mesmo tempo prezamos nossa liberdade de fazer piadas com a desgraça de torcedores de times ameaçados de rebaixamento, damo-nos o direito de fazer ofensas pessoais a pessoas com cujas ideias não concordamos, assistimos à desgraça alheia de camarote e colocamos fotos e filmes na internet do que vimos, enfim, cultivamos o lixo. Tanto é assim que consideramos que ouvir palavrõesa torto e a direito em filmes americanos, em que a palavra mais ouvida é “f**k” é um direito inalienável do indivíduo e uma manifestação da liberdade de expressão, de modo que o famigerado Vladimir Putin, que quer limitaro uso de palavras de baixo calão em espaços públicos, é visto como um execrável ditador por isso.
É óbvio que sempre houve e sempre haverá ganância, cupidez, covardia, violência no mundo enquanto o homem estiver nessas plagas, mas a nós reacionários parece que chegamos a um momento em que não há mais padrões em relação aos quais tais fraquezas são comparadas e estigmatizadas para quenosso comportamento possa ser aprimorado.Por que aprimorar, se qualquer conduta que causa malefícios à sociedade pode ser explicada e justificadacomo uma doença mental, um distúrbio ou uma síndrome? O violador da norma passa a ser vítima, e assim transformamo-nos em uma sociedade infantilizada, em que ninguém assume responsabilidade por coisanenhuma, porque a culpa sempre pode ser transferida.
Prezados leitores, para uma pessimista como eu, nessa toada a civilização ocidental, tal como nós a conhecemos,está fadada à destruição. Meu último e terceiro consolo é saber que provavelmente estarei morta quando a pá de cal for dada.