Na semana passada no nosso Montblatt Cristovam Buarque falava de como o Brasil fez ao longo de sua história poucas escolhas certas e muitas escolhas erradas. Não há como não concordar com ele, especialmente se consideramos que nossas escolhas erradas foram sempre fruto da nossa passividade, da nossa importação de idéias elaboradas alhures e transportadas para as terras tropicais com quase nenhuma “customização” para usar uma palavra da moda no mundo corporativo. Mercantilismo, liberalismo, industrialismo, socialismo, neoliberalismo, todos os ismos que fizeram maravilhas nos países do norte quando aportaram ao sul do Equador só serviram para satisfazer os interesses dos responsáveis pela importação sem que houvesse benefícios gerais.
De fato, os resultados desastrosos que obtivemos – péssimos indicadores sociais, desenvolvimento insustentável, a depender dos altos e baixos das potências dominantes – tiveram culpados ao longo da nossa história, direta e imediatamente aqueles que executaram o programa estrangeiro, e indireta e mais remotamente aqueles que se deixaram engambelar pelas palavras doces ou pela embalagem agradável aos olhos. Os bestializados, como bem definiu José Murilo de Carvalho quando falou sobre o povo que assistiu à proclamação da república sem ter nenhuma participação, nunca perceberam que nossas elites estiveram sempre a instalar vírus cavalo de Tróia na máquina brasil. Se tivessem percebido talvez tivessem reagido de alguma forma consistente e forçado certas concessões reais.
Infelizmente isso nunca aconteceu em nossa história. As mudanças que ocorreram no Brasil, a independência, a abolição da escravidão, a república, a nova república, o controle da inflação, o bolsa-família, não podem ser atribuídas a uma pressão constante das classes populares que levasse os donos do poder a ter medo de perder os anéis e a fazer mudanças substanciais para ficarem com os dedos. Afinal, não é assim que as revoluções funcionam? O projeto radical nunca vence é claro, porque os magnatas sempre conseguem arrumar um jeito de sobreviver mesmo que isso signifique às vezes cortar a própria carne. Os jacobinos da Revolução Francesa, aquela que serve de paradigma a todos nós, foram derrotados, Robespierre, o incorruptível de classe média, foi guilhotinado, os sans-cullotes ficaram em larga medida a ver navios, mas é inegável que houve um arejamento no andar de cima. De aristocráticas, vivendo da renda da terra herdada, as elites passaram a ser burguesas, vivendo da renda de seus empreendimentos financeiros e industriais. Pode ter sido uma mudança de forma, mas ao longo do tempo fez uma enorme diferença: permitiu que surgisse uma classe média que trabalhava nesses empreendimentos vendendo sua capacidade intelectual e não sua capacidade braçal. Napoleão pode ter sido um ditador que sufocou qualquer laivo de verdadeira democracia, mas ele chegou lá por seus próprios méritos e não por ter nascido em alguma família real.
Como nunca tivemos no Brasil classes populares que demonstrassem seu descontentamento e nem setores médios que pensassem por si próprios sem se agregarem às elites, nossas mudanças sempre foram superficiais, ditadas pelas contingências do momento, geralmente externas a nós. Querem ver? A independência foi uma cartada dos Bragança para garantirem a coroa do imenso Brasil quando estavam a ponto de perder a do pequenino Portugal. A escravidão foi abolida no Brasil, entre outros motivos, para satisfazer os pruridos morais da opinião internacional. Quanto aos maiores interessados, os escravos, nunca exerceram qualquer influência sobre o processo, tanto é verdade que a execução da libertação na prática, da maior importância para eles, foi deixada a cargo de ninguém e o resultado foi o apartheid velado que vivemos até hoje no país. Nem vou falar da república, golpe de uma parte da elite que importou o tal do positivismo de Augusto Comte, aplicando idéias epistemológicas destinadas a dar uma qualidade científica às ciências sociais e as desvirtuaram transformando-as em veículo de ordem autoritária e progresso para poucos. Pulando no tempo temos a nova república, pequena satisfação dada aos otários que lutaram pelas diretas já e ao final foram presenteados com José Sarney, lídimo amigo da ditadura que virou a casaca no momento oportuno. Será que teríamos conseguido fazer essa pequena mudança se os Estados Unidos não considerassem a região livre dos seus maiores inimigos, os soviéticos? Afinal, eles ajudaram a derrubar Jango para evitar o mal maior do comunismo.
Até aqui falei das mudanças políticas feitas por nossas elites, loucas por um produto importado. No terreno econômico elas não ficam atrás na insistência em dançar conforme a música da economia internacional. Fomos colônias agrícolas nos séculos 16-19 para contribuir com a industrialização da Europa, industrializamo-nos no século XX a reboque da necessidade de o sistema financeiro internacional, comandado pelos Estados Unidos, darem vazão à liquidez abundante, que culminou com a farra dos petrodólares. Controlamos a inflação na década de 90 e estipulamos renda mínima para os pobres no âmbito do Consenso de Washington, pavimentando nossa entrada no sistema global de livre comércio capitaneado pela OMC. Isso abriu nossas portas para o mundo dos produtos industriais importados que se mantiveram preços baixos aqui, acabaram contribuindo para consolidar nosso papel global de potência agrícola.
Enfim, nunca tivemos elites que fossem obrigadas pelo povo a serem criativas e a inventarem modos alternativos de organização. Há três semanas vi o filme sobre Margaret Thatcher e admirei o nacionalismo dela, a clara visão que aquela mulher tinha de aonde queria levar a Inglaterra. Independentemente de concordar ou não com as idéias, não há como não se deixar fascinar pelo caráter firme da “afanadora de leite” (seus detratores a chamavam de Margaret Thatcher, milk snatcher). E a filha de quitandeiro teve que ter nervos de aço para penetrar no ambiente exclusivo da elite britânica, elite esta que nos áureos tempos mandava seus filhos a Eton para literalmente comerem o pão que o diabo amassou e passarem frio no inverno. Só assim os meninos adquiriam o caráter necessário para assumir responsabilidades, cuidar dos outros e comandar o império. A nata brasileira, ao contrário, vive refastelada em seu conforto tropical e o melhor rito de iniciação que temos à vida adulta no Brasil são as universidades públicas, que em muitos casos, como no local em que a que vos fala estuda, são antros de privilégios, cinismo, preguiça acadêmica, picaretagens e da filosofia um tanto quanto depassée do “É proibido proibir”. Nós, membros da elite no Brasil, longe de almejarmos altos padrões de realização, nos damos por satisfeitos em estarmos acima dos pretos e pobres. Enquanto essa mentalidade não mudar nunca daremos o salto de qualidade que permita que nossos lampejos de crescimento econômico levem ao desenvolvimento.