Neste mês de abril a empresa em que trabalho, que era brasileira, fundada por um brasileiro, foi vendida a uma multinacional. É difícil resistir nessa área de serviços, as margens de lucro são pequenas devido à competição e o que é o ponto mais fraco, como há falta de mão de obra qualificada, as multinacionais oferecem mais benefícios e portanto conseguem fisgar os profissionais disponíveis. Essa falta crônica de condições para fazer negócios inclui a infraestrutura urbana: o metrô em São Paulo está cada vez mais saturado e inoperante, os funcionários, a maioria moradores da Zona Leste, sempre se atrasam por conta das panes, e chegam irritados ao trabalho. Num cenário como esse, será cada vez mais difícil surgir empreendedores no Brasil que abram empresas e possam expandi-las. Não havendo fartura de recursos para que todos possam tentar sua chance, as multinacionais sempre terão uma vantagem comparativa insuperável.
Então é preciso nos rendermos aos gringos. Desde que houve a integração, eu já tive que fazer vários cursos na internet, com prazos sempre exíguos que não levam em conta o fato que eu tenho meu trabalho normal a realizar. Gerenciamento de riscos, segurança da informação, normas de ética e conduta, cada um leva oficialmente três horas que parecem dez levando em conta que são traduzidos. A tradução é uma grande porcaria e a leitura se arrasta, porque não fazem o que se chama de localização, isto é a adaptação ao contexto local: os slides se sucedem falando de coisas totalmente irrelevantes no contexto brasileiro: fideicomisso, fundos mútuos, órgãos reguladores dos EUA. No final há sempre um prova, e é preciso ter uma pontuação mínima, do contrário não obtemos o certificado de conclusão. E a empresa não poderá cumprir os requisitos regulatórios se não tiver funcionários acreditados nos processos e regras da profissão.
O objetivo das empresas ao nos obrigar a realizar essas atividades é o de introjetar os tais valores que normalmente giram em torno de trabalho em equipe, liderança e ética, tudo claro para “agregar valor aos clientes” e assim retê-los, criar uma boa imagem da marca e “conquistar novas fatias de mercado”. Belas palavras, mas como diria o saudoso Vicente Matheus, presidente do “Curintia” na prática a teoria é outra.
Percebi isso na quarta-feira, quando no elevador indo embora para casa, comentei que eu tinha finalmente acabado um dos treinamentos depois de uma tarde toda de luta e tinha passado na prova! Ao que um moço da informática retrucou, lampeiro: “Pois eu fiz em meia hora!”. Eu espantada perguntei: “Ué, mas como você consegui passar rapidamente pelos slides, não demora para carregar?” E ele disse: “Ah tem uma tecla que passa rapidinho e no final eu perguntei para um outro que tinha feito e ele me deu a resposta.” Eu otária, tinha lido tudo minuciosamente, respondido às perguntas sozinha e os espertos conseguiram achar uma gambiarra tecnológica e se livraram da incumbência de maneira indolor. E o mais engraçado de tudo é que eu, apesar de todo meu bom comportamento, posso ser mandada embora e ele ficar, porque aos olhos da corporação, nosso certificado de conclusão vale a mesma coisa, não importando os meios espúrios com que foi obtido. De quem é a culpa? Dos gringos que fingem não ver a cultura brasileira em ação e fingem não perceber a inutilidade dessa educação à distância? Dos funcionários, que não agem com ética e preferem ser malandros?
Acredito que é uma mescla disso tudo. Os gregos já sabiam que a melhor lei é aquela não verbalizada, mas que está introjetada na alma do indivíduo por meio da educação. Não haveria necessidade de códigos de conduta se cada indivíduo aprendessse desde cedo como se comportar imitando o exemplo dos pais, dos professores. Eu acho o treinamento tão insuportável quanto os que o fizeram em meia hora, mas minha formação me impede de driblar as regras: se a empresa está pagando meu salário, se tenho um vínculo empregatício, devo obedecer às ordens, e se não estiver contente com elas devo manifestar minha oposição ou então sair da empresa. Mas o comportamento das pessoas é normalmente o pior possível, porque mescla falta de responsabilidade e covardia: elas não têm coragem de enfrentar a instituição e ao mesmo tempo não querem perder o emprego, por isso fingem que são bons funcionários.
Nesse sentido, todos os valores que eles querem que nós passemos a executar na prática se transformam em grande parte em letra morta. Alguns poucos indivíduos irão corresponder às expectativas corporativas, não porque aprenderam nos web learning, mas porque já tinham isso dentro de si. Fazer um curso de liderança não vai fazer de ninguém um líder, pois ser um líder verdadeiro é assumir responsabilidades, e ter um comportamento leal que inspire confiança em seus funcionários. Isso faz parte do caráter da pessoa, que se reflete na prática cotidiana, no modo de tratar as pessoas com respeito e com coerência. E caráter se forma não nos corredores corporativos, mas pela experiência de vida.
Aí que está o problema. Em nossa sociedade de consumo tudo o que queremos está fora de nós, temos que adquirir pela compra. Temos cada vez menos tempo de ter contato com as pessoas, incluindo nossos próprios familiares, de observá-las, emulando-lhes as qualidades e reparando nos defeitos para evitá-los. Não sabemos lidar com perdas, porque na sociedade de consumo ilimitado, perdas não existem, quando muito coisas como morte, doença são apenas derrogações do prazer. Quantas capas da Caras, a expressão máxima de nossa psiquê, nos falam de celebridades que tiveram câncer, perderam algum familiar, levaram um pé na bunda e estão lá lépidas e faceiras, posando para o fotógrafo como se aquilo fosse apenas um pequeno incidente na marcha inexorável da felicidade a ser obtida?
A caravana anda e não há tempo para se voltar a si mesmos e refletir sobre nossas angústias, incertezas, medos. O melhor a fazer é estampar o sorriso Colgate no rosto, mesmo que isso nos transforme em autômatos, que fazem apenas repetir o que lhe mandam sem atentar para os desdobramentos. Complete a prova! Sim, eu completo, mesmo que não saiba quais as conseqüências de eu estar dando meu acordo a tudo aquilo que está sendo imposto a mim, incluindo penalidades se eu não fizer o que eu prometi. Sorria sempre! Sim, eu sorrio, e ao fazê-lo estou escondendo de mim mesmo meus fracassos, minhas frustrações, meus vazios. E la nave va, sem rumo, ao sabor dos ventos, ou melhor das regras que nos são impingidas sem que tenhamos o caráter suficiente para ter consciência do que de fato significam. Nesse entrementes não adquirimos a experiência de vida que nos torna sábios, mas apenas acumulamos pontos no programa de milhagem: milhagens corporativas, amorosas, sexuais, etc.
Uma feliz Páscoa a todos os leitores do Montblatt e espero que acumulem muito ovos de chocolate!