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Maus Selvagens

Posted by on 10/08/2014

Nós consideramos ao contrário que o poder político é universal, imanente ao social (quer o social seja determinado pelos “laços de sangue” ou pelas classes sociais), mas que ele se realiza de dois modos principais: poder coercitivo, poder não coercitivo.

Trecho retirado do ensaio “Copérnico e os Selvagens” do livro A Sociedade contra o Estado do antropólogo francêsPierre Clastres (1934-1977)

 

                Prezados leitores, há alguns dias li na Revista Piauí um perfil do antropólogo carioca Eduardo Viveiros de Castro, que está fazendo sucesso no meio acadêmico mundial com seus estudos sobre a metafísica peculiar dos índios sul-americanos, para os quais o que é universal é a cultura e o que muda, o que é construído, é a natureza, uma visão diametralmente oposta à ocidental. Viveiros tem como um dos seus mentores intelectuais Pierre Clastres, que estudou o modo de exercício do poder nas sociedades indígenas, caracterizado por ele como do tipo não coercitivo. O chefe de uma tribo deve ter três qualidades principais: deve ser um fazedor de paz, isto é ser a “instância moderadora do grupo”, procurando manter a paz e a harmonia, e “mais do que um juiz que sanciona ele é um árbitro que tenta reconciliar”; deve ser generoso com seus bens e deve ser um bom orador.

                  Devo dizer que minha atitude em relação à antropologia é ambígua. Fiz um curso há alguns anos na faculdade, daí eu ter lido o livro de Pierre Clastres, e àquela época entusiasmei-me bastante, principalmente porque o professor mesmo era apaixonado pela disciplina. Normalmente pessoas de esquerda identificam-se com os estudos sobre outras culturas não ocidentais, porque é uma maneira de criticar a sociedade capitalista, apresentar uma alternativa de vida ao nosso modus operandi. É inegável que a antropologia tem essa qualidade de permitir-nos ter uma sensação de estranhamento e perceber que nosso comportamento não é natural.Deixem-me dar-lhes um exemplo de tal atitude.

                  Em um desses encontros fortuitos na copa, uma colega de trabalho confessou-me que tinha viajado para o Primeiro Mundo. Digo confessar porque esses fatos não podem ser divulgados abertamente no ambiente corporativo, em que a luta de classes ocorre na surdina. Como sou da turma que “viaja ao Primeiro Mundo” minha colega não teve vergonha de dar-me detalhes da sua estadia nos Estados Unidos, em Orlando, pois eu não sentiria rancor por nunca ter feito uma viagem internacional. O objetivo oficial era que a filha única conhecesse os parquesaquáticos, o objetivo velado era fazer compras, aproveitar o maravilhoso mundo dos outlets, dos shopping malls, em que tudo é até três vezes mais barato do que em nosso paraíso tropical que leva nas costas o tal do custo Brasil.

               A orgia consumista resultou em quatro malas cheias de roupas, cremes, sapatos e o alívio existencial de saber que a gastança na verdade é uma economia, porque a família de minha colega teve a oportunidade de comprar coisas que no Brasil não estariam acessíveis ao seu bolso. Claro que felicitei-a por ter tido tal oportunidade de fazer da viagem algo proveitoso do ponto de vista econômico, mas não pude deixar de admirar-me e dizer a mim mesma: Meu Deus, a pessoa passa dez dias em um país estrangeiro, e em vez de apreciar a paisagem, tentar conhecer a culinária local, a cultura local, visitar algum museu, instruir-se valendo-se dos recursos de que dispõem um país de Primeiro Mundo, ela se enfurna em lojas para comprar obsessivamente. Um creme de cabelo estava sete dólares em Miami Beach e três dólares em Orlando(ou vice-versa, não lembro mais). Minha colega com raiva de ter pago mais caro comprou dois no local mais barato, para compensar. Provavelmente vai ter creme de cabelo pelos próximos dez anos, se é que não vai ter que jogá-lo fora quando expirar o prazo de validade.

                     Como não apreciar o papel dos estudos sobre as chamadas economias de subsistência dos indígenas para despertar nossa consciência sobre o problema da sustentabilidade ambiental em uma sociedade baseada no consumo desenfreado como é a nossa? Nós ocidentais falamos muito da tal da preocupação com o meio ambiente, mas na prática o único efeito disso em nossa economia capitalista é ter criado um novo nicho de mercado de produtos orgânicos, recicláveis, biodegradáveis, probióticos e seja lá o que for que apenas mudou o tipo de consumo e não sua quantidade.Ou seja, a roda da fortuna continua a girar…

                   Por outro lado, não consigo deixar de ver na antropologia uma certa inutilidade. Se ela nos alerta sobre o quão o modo de ser capitalista é uma entre outras possibilidades, por outro lado, o conhecimento sobre o modo de organização de sociedades indígenas serve pouco para melhorarmos nosso modo de vida. Saber que há um tipo de poder não coercitivo, baseado no consenso, no diálogo, na capacidade de conciliar os opostos não tem como influenciar nossas capacidade de resolver os problemas concretos que se colocam na cena mundial. O conflito entre israelenses e palestinos é um exemplo dessa impotência.Por mais que haja uma certa indignação mundial com a desproporcional matança de civis na Faixa de Gaza, o fato é que Israel aos poucos vai atingindo seu objetivo de minar a resistência palestina à conquista do território, valendo-se dos métodos que são tidos e sabidos na realpolitik há milênios, desde que Tucídies escreveu seu A Guerra do Peloponeso: uso da força, capacidade de mobilização de aliados poderosos, aniquilação física e moral.

                De fato,de 1949 a 2014 o país recebeu US$ 121 bilhões de dólares de ajuda do governo dos Estados Unidos, que o provê de armamentos para tornar Israel o principal poder militar do Oriente Médio. O lobby da AIPAC, o Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel, foi bem-sucedido desde sua fundação, há 51 anos, em identificar a causa nacional palestina com o terrorismo.Em um cenário desses, em que os palestinos vão sendo mortos ou incapacitados fisicamente, qual o sentido de falarmos em um modo alternativo de exercício do poder? Não é ingenuidade falarmos de diálogo, conciliação quando a capacidade militar e de convencimento dos formadores de opinião mundiais rendem frutos? Israel só se veria obrigado a mudar seu comportamento se houvesse uma mobilização internacional em termos de boicote a produtos israelenses ou outra medida que afetasse a economia do país. Ou seja, a força deve ser enfrentada com uma força oposta de igual intensidade. A lição dos antropólogos nesse caso é contraproducente, poisquanto mais esperamos pela boa vontade do governo israelense, por sua tomada de consciência de que fazer a paz é o melhor caminho, maisseus objetivos de longo prazo, i.e. garantir todos os territórios disputados para si por meio da ocupação, serão mais bem concretizados.

                    Em suma, a antropologia pode ser uma fonte de inspiração para vislumbramos um mundo em que os principais problemas da civilização ocidental, entre eles o colapso ambiental, possam ser resolvidos, mas ela não deve fazer-nos perder de vista que as complexidades das sociedadesorganizadas à maneira ocidental requerem muitas vezes soluções que só podem ser encontradas se olharmo-nos no espelho sem sonharmos ingenuamente com mundos paralelos de duvidosa concretização.

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