A razão não é um “princípio ou uma faculdade independente”, “não tendo nenhuma tendência de nos estimular à ação; de maneira prática ela é simplesmente uma comparação de diferentes sentimentos. A razão … é calculada para regular nossa conduta de acordo com o valor comparativo que ela atribui a diferentes tipos de excitação” ou impulsos. “A moralidade nada mais é do que um cálculo das consequências,” incluindo as consequências para o grupo.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pensamento do filósofo e jornalista inglês William Godwin (1756-1836)
Existem em Paris muitas mulheres que, semelhantes à condessa Ferraud, vivem com um monstro moral dentro de si, ou ficam lado a lado com o abismo; elas fazem do lugar do mal um calo e ainda conseguem rir dele e se divertir com ele.
Trecho retirado do livro “Colonel Chabert”, do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850)
Prezados leitores, a Batalha de Eylau, travada entre o exército francês de um lado e os exércitos russo e prussiano de outro, é considerada como uma grande carnificina em que o general francês Joaquim Murat (1767-1815) avançou com seus 10.000 cavaleiros sobre os russos, perdendo 1500 dentre eles. No total houve ao redor de 25.000 feridos e 15.000 mortos na batalha travada no que era então a Prússia Oriental. Entre os cavaleiros relacionados como mortos, está Hyacinthe, dito Chabert, marechal de campo e Grande-Oficial da Legião de Honra que comandava um regimento de cavalaria.
Sua esposa, Rose Chapotel, herda os bens do marido e uma polpuda pensão condizente com a patente militar daquele que era um dos queridos de Napoleão e casa-se com o conde Ferraud, com quem tem dois filhos. Ladina para os negócios, a condessa Ferraud multiplica seu patrimônio, enquanto o segundo marido sonha em ser nomeado para a Câmara dos Pares, criada pelo rei Luís XVIII (1755-1815). Para isso ele quer se livrar da esposa que não é mais conveniente para suas ambições políticas e casar com a filha de algum senador. Mas, por enquanto, Rose continua condessa, desfrutando do luxo proporcionado por seu dinheiro e do status social proporcionado pelo esposo aristocrata.
A situação muda com a chegada de um morto-vivo, seu marido que escapa da morte por ficar debaixo do seu cavalo e perambula por 10 anos, vivendo praticamente como um mendigo e tentando retomar o que é seu por direito. Suas cartas à esposa foram ignoradas durante todo esse tempo, mas Chabert acaba encontrando um advogado que acredita na história dele e consegue reunir a documentação necessária para provar que ele está vivo e para anular o óbito. Mais importante do que isso, Deville consegue descobrir o ponto fraco da mulher, que quer a todo custo ficar casada com o conde, mas sabe que este está ávido por encontrar um meio de se livrar dela dignamente. A volta do primeiro marido legítimo seria um meio perfeito.
É esse o monstro moral mencionado na abertura deste artigo. A fachada respeitável e feliz de Rose esconde o medo de o segundo marido repudiá-la sob qualquer pretexto e o medo de que sua vida pregressa de mulher de um militar do exército napoleônico venha à tona, em pleno período de restauração da monarquia dos Bourbon na França. Deville explora muito bem esses fantasmas em sua conversa com a condessa, convencendo-a a transacionar com o marido, isto é, concordando em dar-lhe algum dinheiro em troca do seu silêncio.
Deville então marca um encontro com Hyacinthe e Rose em seu escritório. A ideia é que ele sirva de mediador entre os dois, que ficarão em locais separados para viabilizar a transação. Deville propõe condições a Rose e ela diz se aceita ou não. Ao final, Deville espera que o casal chegue a um acordo satisfatório para ambos a respeito do dinheiro, de modo que Chabert possa viver sem passar por necessidades materiais, como tem ocorrido há anos e que a condessa continue sua vida glamourosa sem atropelos.
Plano sensato do advogado este de colocá-los apartados para não haver interferências emocionais em uma troca que deve ficar no mundo dos negócios para que ambas as partes saiam materialmente satisfeitas. E no entanto, Chabert não se contém: o desejo de conseguir o dinheiro da forma mais viável, que é a de arrancar uma concessão da mulher, ao invés de lançar-se em um processo judicial custoso, longo e de resultado incerto, coexiste com sua mágoa, seu despeito de a mulher estar rica e feliz sem ele, com outro homem, e ele ser um velho alquebrado com a cabeça marcada por uma grande cicatriz. Chabert entra na sala onde está Rose e a confronta, fazendo desandar as negociações.
O comportamento de Chabert ilustra a natureza da razão exposta pelo filósofo inglês William Godwin em seu livro intitulado “Enquiry Concerning Political Justice and Its Influence on General Virtue and Happiness”. Conforme o trecho que abre este artigo, ela não existe como um princípio em abstrato, com uma vida independente. Ela na verdade serve para fazer uma ponderação sobre nossos diferentes desejos e inclinações e tomar uma decisão sobre como agir. Nesse sentido, a moralidade atua calculando as consequências de tal ou qual curso de ação. Para Godwin a moralidade é a ciência da felicidade humana: ela une o indivíduo ao grupo, criando estímulos para nos convencer, após essa ponderação das diferentes tendências, a atuar da maneira que melhor beneficia todos, pois uma das premissas da moral de Godwin é que não existe maior felicidade para o homem do que contribuir para a felicidade dos outros.
Godwin acredita na possibilidade de aperfeiçoamento da humanidade e isso só será possível pela educação individual: cada pessoa, alargando seu conhecimento e seu campo de visão, terá bases cada vez mais sólidas para considerar as diferentes inclinações que carrega dentro de si, colocando-as em perspectiva, relativizando-as e estabelecendo sua importância no contexto geral. Assim, a educação permitirá que a razão esteja mais bem equipada para fazer as ponderações necessárias sobre as consequências de determinada ação para o indivíduo e para o grupo, levando-o a tomar decisões cada vez mais acertadas, isto é, que tragam felicidade ao mesmo tempo para ele e para a sociedade como um todo.
Prezados leitores, hoje esquecido, em sua época William Godwin foi o mais influente filósofo inglês de sua geração. Se Chabert tivesse seguido sua receita da felicidade, ele teria percebido, depois de ponderar os prós e os contras de um acerto com a mulher, que o melhor a fazer era transigir, a despeito de todo o ressentimento que nutria por uma ingrata que usufruiu por anos de seu dinheiro e se recusou repetidamente a reconhecer que ele não morrera. Transigindo ele conseguiria um módico de felicidade para si, porque teria meios materiais para sustentar-se e para a esposa, que poderia seguir a vida que ela escolhera. E como ensinou Godwin, no final das contas, a felicidade só existe se for compartilhada, se a felicidade de um é a felicidade de todos. Este é o caminho da utopia de Godwin, que acabou sendo apagado pelas areias do tempo.