A totalidade dos animais, a maioria esmagadora dos homens vive sem jamais experimentar a mínima necessidade de justificação. Eles vivem porque vivem e isso é tudo, é assim que eles pensam; depois acho que eles morrem porque morrem, e que a morte, a seus olhos termina a análise. […] Eu obviamente não esperava ter um final de vida feliz, não havia nenhuma razão para que eu fosse poupado do luto, da doença e do sofrimento; mas eu podia até então esperar sair do mundo sem violência exagerada.
Trecho retirado do livro “Soumission” do escritor francês Michel Houellebecq (1956- )
No domingo, o Presidente Joe Biden autorizou o uso pela Ucrânia de mísseis de longo alcance fornecidos pelos Estados Unidos para ataques à Rússia. A súbita reversão de política representa uma escalada dramática na guerra que exigira uma resposta firme de Moscou. O Presidente Putin alertou repetidas vezes que o lançamento de mísseis contra alvos localizados no território russo iria detonar duros ataques de retaliação não somente em locais na Ucrânia, mas também nos países diretamente envolvidos nos ataques, a saber a OTAN e os Estados Unidos.
Trecho retirado do artigo “ Going Out with a Bang”, escrito por Mike Whitney
Prezados leitores, permitam-me apresentá-los a Steven, professor de literatura da Universidade Paris IV, solteiro, residente na capital da França e personagem do livro “Soumission”, de Michel Houellebecq. Como professor universitário, Steven tem dinheiro suficiente para ter um carro e pedir comida japonesa, indiana, árabe e qualquer outra para ser entregue em sua residência. Ele vive em seu mundinho feito de encontros com colegas da faculdade e ex-namoradas, e uma fonte de diversão para ele é assistir à TV no domingo em que ocorrem eleições presidenciais para ver os apresentadores divulgarem o resultado da disputa.
Conforme o trecho que abre este artigo, narrado por Steven na primeira pessoa, ele não tem grandes expectativas na vida. Como habitante do mundo ocidental pós-cristão em pleno século XXI, ele não se vê como um ser a quem uma divindade transcendente tenha dado um papel especial no grande esquema das coisas como único ser vivente dotado de racionalidade ou de alma ou de inteligência ou qualquer atributo que nos distinga dos animais. Para que justificar a vida do homem? A maior parte das pessoas não faz isso e vivem tão normalmente como aqueles poucos que tentam dar um sentido à existência neste mundo. Apesar de ter escrito uma tese de doutorado, Steven não dá grande importância a essa realização intelectual, além do fato de lhe ter dado a qualificação necessária para um cargo de professor de universidade que lhe permite pagar as contas e viver confortavelmente.
Apesar de enxergar seu papel na sociedade como não tendo nada de especialmente relevante, Steven ainda conserva uma humilde expectativa: quer viver de maneira segura, isto é, livre da violência. Claro que ele espera enterrar entes queridos, ficar velho e doente como todo mundo e ele não se considerará particularmente azarado se tudo isso ocorrer. Por outro lado, vivendo em um país europeu do Primeiro Mundo, Steven espera passar seus dias sem ser atacado fisicamente. A rotina parisiense seguida por ele confirma essa fé na sua integridade individual até o momento em que ocorrem eleições presidenciais e o segundo turno é disputado por um candidato de extrema-direita do Rassemblement Nacional e pelo candidato da Fraternidade Muçulmana. É então que eclode a guerra civil e ocorre a reversão das suas expectativas de paz e segurança.
Houellebecq, como fino observador do homem ocidental do século XXI, vislumbrou em 2015, ano em que Soumission foi publicado, um cenário de ameaça de violência que parece estar se desenhando agora em 2024. Conforme o trecho que abre este artigo, o Presidente Biden, em fim de mandato, autorizou que a Ucrânia, invadida pela Rússia em fevereiro de 2022, utilize mísseis americanos de longo alcance para atingir alvos em território russo. E tão logo dada a autorização, a Ucrânia lançou seis mísseis contra a Rússia no dia 19 de novembro, sendo que cinco foram interceptados. Na mesma data, o presidente russo Vladimir Putin publicou um decreto atualizando a doutrina nuclear da Rússia para ampliar os casos em que o país se dá o direito de utilizar armas nucleares, incluindo a hipótese de qualquer país lançar mísseis balísticos contra a Federação Russa e a hipótese de um país não nuclear cometer agressão contra a Federação Rússia mediante a ajuda de um país nuclear.
Considerando que o Presidente eleito Donald Trump havia prometido durante a campanha acabar com a guerra, essa liberação do lançamento de mísseis americanos de longo alcance a partir da Ucrânia parece ter como objetivo intensificar os combates e tornar a busca de uma solução negociada mais difícil para o futuro mandatário americano. Resta saber que tipo de retaliação nuclear a Rússia fará contra os ataques de 19 de novembro. Será que vão deixar para lá, considerando que a maioria dos mísseis foi neutralizada e que o novo governo americano toma posse em 20 de janeiro? Ou será que vão imediatamente seguir as diretrizes colocadas pelo novo decreto de Putin? Será que alvos na Europa e nos Estados Unidos já estão sendo escolhidos?
Prezados leitores, será que este século XXI, em que o ser humano não acredita mais ser o ápice da criação, será o século em que mesmo nossas humildes expectativas de poder viver na segurança da nossa mediocridade não poderão ser satisfeitas? Será que as eleições presidenciais nos Estados Unidos abriram uma caixa de Pandora de escalada de violência como as eleições presidenciais na França abriram no livro de Houellebecq? Aguardemos os desdobramentos e enquanto isso, não deixemos de esperar humildemente que possamos tocar nossa vidinha como Steven toca na Paris retratada em Soumission.