Com mais de 60 anos, um pouco depois de se aposentar, ela havia aceitado se ocupar de novo de uma criança – do filho do seu filho. A este também nunca faltou nada – nem roupas limpas, nem um bom almoço no domingo, nem amor. Tudo isso, na vida dela, ela havia feito. Uma análise pouco detalhada da humanidade deve necessariamente levar em conta esse tipo de fenômeno. Tais seres humanos historicamente existiram. Seres humanos que trabalharam a vida toda, duramente, unicamente por devoção e por amor: que davam literalmente sua vida aos outros em um espírito de devoção e de amor: que não davam de maneira nenhuma a impressão de se sacrificarem; que na realidade não vislumbravam outra maneira de viver que de doar sua vida aos outros, em um espírito de devoção e de amor. Na prática, esses seres humanos eram geralmente mulheres.
Trecho retirado do livro “Les particules élémentaires” do escritor francês Michel Houellebecq (1956- ), descrevendo a avó do personagem principal do romance, Michel
Se não poderia haver um policial em cada esquina, poderia haver deuses, mais fantásticos ainda por não serem vistos, podendo ser multiplicados livremente e de acordo com a necessidade em seres místicos, exortativos ou ameaçadores, percorrendo todos os graus da divindade e do poder, desde o ermitão do deserto até o comandante supremo, preservador e destruidor das estrelas e dos homens. Que sublime concepção! – que organização comparável para sua disseminação e operação! – que apoio sem preço a professores, maridos, pais e reis!
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias que Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, tinha sobre a religião como fundação da ordem moral
Se, por um lado, o fato de amar D. Pedro fazia-a aceitar calada tudo o que viesse dele, por outro ela tinha uma noção maior do que o marido do seu dever como imperatriz e estaria pronta a aguentar as humilhações para não desprestigiar a coroa perante o povo. Não lhe restavam alternativas a não ser fingir que nada estava ocorrendo. […] Porém o excesso de submissão a que se impusera, pois não lhe era natural na Áustria aceitar as coisas de que não gostava sem lutar, cobraria o seu preço, abalando-a psicologicamente no futuro.
Trecho do livro “D. Leopoldina, a história não contada: a mulher que arquitetou a independência do Brasil” do historiador Paulo Rezzutti (1972-
Prezados leitores, imaginem a cena, passada em janeiro de 1826, nas águas do Oceano Atlântico, rumo a Salvador, Bahia. D. Pedro I (1798-1834), Imperador do Brasil, anda pelo convés do navio acompanhado de sua amante, Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), a Marquesa de Santos e de sua filha, Maria da Glória (1819-1853), a futura rainha Maria II de Portugal. Trancada na cabine está a Imperatriz Leopoldina (1797-1826), pouco inclinada a expor-se aos tripulantes e aos passageiros do navio considerando que o marido não fazia a mínima questão de esconder seu relacionamento amoroso com a “Titília”. Chegando em Salvador, Pedro iria a todos os eventos públicos acompanhado da mulher e da amante e com esta reza a lenda que teria tomado banho nu no Morro de São Paulo. A seu pai, o imperador Francisco I (1768-1835), Leopoldina confessaria que a viagem fora “extremamente desagradável em todos os sentidos”.
Pudera, ter que se apresentar à vista dos súditos ao lado da Marquesa de Santos e fingir que estava tudo bem exigia um autocontrole muito grande, mas Leopoldina sempre esteve à altura da tarefa, pois sabia que coisas muito mais importantes do que suas vexações pessoais estavam em jogo, conforme o trecho que abre este artigo. Era preciso manter a imagem da Coroa perante o povo brasileiro, de modo que a monarquia, um regime recém-implantado nos trópicos, pudesse fincar raízes e consolidar-se. Em sua biografia da primeira imperatriz do Brasil, Paulo Rezzutti, que credita a ela a ideia da independência do país, ressalta essa capacidade da augusta Maria Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo-Lorena de agir sempre em prol dos interesses do Estado, de mostrar-se sempre altiva e digna, apesar de por dentro estar dilacerada pela tristeza de saber que seu esposo não gostava dela.
Leopoldina cumpriu suas obrigações nos mínimos detalhes: apesar de viver isolada e triste por não gozar da companhia de Pedro, participava de cerimônias públicas mostrando-se sorridente para alimentar o espetáculo da monarquia, praticava a caridade ao ponto de endividar-se e quando já estava agonizando em seu leito de morte, vítima de uma erisipela para alguns, ou de febre tifoide, de acordo com o diagnóstico agora mais atualizado, chamou os funcionários do Palácio para agradecer-lhes os serviços e perdoá-la por algo que pudesse ter feito a eles. Enfim, fez o que ela via que era melhor para que a monarquia sobrevivesse no Brasil e para que seus descendentes pudessem governar o país por anos a fio.
Essa abnegação, essa dedicação aos outros como elemento que dá sentido à vida e que é em sua maior parte uma característica feminina, foi notada por um escritor contemporâneo em pleno século XXI, Michel Houellebecq, em seu livro de 1998, “Les particules élémentaires”, cujo trecho é citado na abertura deste artigo. A avó de Michel o criou depois de uma vida de trabalho, quando já estava aposentada e, portanto, tinha um pouco de tempo para descansar. Realizou tal tarefa sem pedir nada em troca, sem esperar nada em troca, apenas porque sentia ser essa sua obrigação geral. Nesse sentido, Michel Houellebecq contrapõe essas mulheres que se sacrificavam pela família, ou pela sociedade em geral, às mulheres produto da revolução cultural da década de 1960. Mulheres para as quais ser mãe era simplesmente ter uma experiência da maternidade, como fazer sexo era também uma experiência, nada além disso, daí que não passava pela cabeça de uma mulher liberada limitar seus desejos pessoais, sua aventura de vida pelo fardo de cuidar de filhos. O personagem Michel do livro, um biólogo, é filho de uma dessas mulheres, que o abandona porque quer seguir em frente, desimpedida, livre para amar, para fazer suas próprias escolhas sem ter que levar em conta as necessidades dos outros.
Se a mãe de Michel é fruto do ambiente em que “é proibido proibir”, como descreve Michel Houellebecq, sua avó é fruto de qual ambiente? Ora, daquele mesmo ambiente que inculcou em Leopoldina o senso do dever acima dos sentimentos pessoais, o ambiente da religião. O escritor francês, ao mostrar em suas obras esse Ocidente pós-cristão, povoado de seres individualistas e vazios espiritualmente, revela pelo contraponto a verdade que já havia sido constatada por Napoleão Bonaparte no século XIX e que o fez assinar uma Concordata com o Papa em 1801, depois de mais de dez anos em que a Revolução Francesa havia espoliado a Igreja Católica de seus bens, banido a educação religiosa e tornado o Estado laico.
Conforme o trecho que abre este artigo, é forçoso reconhecer que a fundação mais sólida que pode haver para uma ordem social é a religião. A religião é uma arma poderosa para controlar o comportamento das pessoas pois ela cria uma narrativa que dá sentido à vida, principalmente para aqueles que saem perdendo e que, portanto, teriam mais razões para revoltarem-se: se uma mulher é traída pelo marido publicamente, humilhada e negligenciada, basta acreditar na ideia de que uma justiça divina operará no futuro. Os que sofreram neste mundo serão recompensados no outro lado, de forma que aquela que só cumpriu obrigações e acabou morrendo por estar abalada física e psicologicamente terá a eternidade para desfrutar do Paraíso, o lugar dos virtuosos.
Uma ferramenta como essa, que ao mesmo tempo enche de medo os que se atrevem a sair da minha pelo medo da punição do ser onipotente e enche de esperança os que não levaram nada em troca por seus desvelos ao longo da vida não pode ser deixada de lado por nenhum governante que preze pela estabilidade. E foi assim que Napoleão, apesar de seu ceticismo pessoal sobre a existência de Deus, fez questão de assinar uma Concordata com o Papa Pio VII em 16 de julho de 1801.
Prezados leitores, a Marquesa de Santos deixou a corte definitivamente em 1829, quando D. Pedro precisava livrar-se dela para poder casar-se novamente. Voltou a São Paulo com burros de dinheiro, literalmente, que lhe permitiram viver confortavelmente até os 70 anos de idade e ainda casar-se de novo e ter mais filhos com Rafael Tobias de Aguiar (1794-1857), o patrono da ROTA. Entre os bem-pensantes, ela é vista como uma mulher que ao desafiar as convenções sociais empoderou-se, tomando as rédeas do seu destino. Leopoldina morreu aos 29 anos de idade, sem receber nada em troca do que ela fez pela Monarquia brasileira. Sua presença era tão importante para dar credibilidade ao regime que, quando D. Pedro viu-se sozinho, dando vazão a suas paixões sem o contraponto da calma, do conhecimento e da sabedoria da sua esposa, ele só meteu os pés pelas mãos e teve que abdicar em 1831. A humilde avó do personagem Michel morre em um hospital, depois de ter trabalhado a vida toda em troca de quase nada. Uma foi esperta, as outras foram otárias, porque só perderam. Mas o que seria do mundo se não houvesse um pequeno grupo de otárias, geralmente mulheres conscienciosas orientadas por princípios religiosos? O que teria sido de Michel se não tivesse tido sua avó como mãe e o que teria sido do Brasil se Leopoldina não tivesse estado ao lado de D. Pedro, aconselhando-o a pegar o fruto que estava maduro no momento crucial da formação do país como nação independente? As otárias sempre perdem, mas sem elas as espertas não poderiam brilhar, porque não haveria ordem no mundo contra a qual insurgir-se. Viva as otárias!