Nada poderia ser mais absurdo do que lições de moral em tal momento! Ah, gente convencida: com que convencimento orgulhoso esses tagarelas estão prontos para fazer seus pronunciamentos! Se eles soubessem o quanto eu mesmo percebo o quão repugnante é minha condição atual, ele s não teriam a coragem de me ensinar nada.
Trecho retirado do livro “O Jogador” de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) que conta a história de Alexey Ivanovitch, um viciado em apostas, alter ego do autor
Nos últimos cinco anos, o número de pessoas que arriscam algum tipo de palpite on-line, nas mais variadas plataformas e modalidades de jogos, atingiu a marca alarmante de 52 milhões – praticamente a população da Argentina e do Paraguai juntas. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva apontou que 86% dos apostadores possuem dívidas e que seis em cada dez jogadores estão com o nome sujo nos órgãos de proteção ao crédito.
Trecho retirado do artigo “O drama da compulsão”, publicado na edição de 1º de novembro da revista Veja São Paulo
Agora que as crenças míticas estavam perdendo sua influência e a imprensa havia facilitado a preservação do conhecimento e a passagem do bastão da civilização, os homens podiam esperar construir culturas duradouras com base em um código moral no qual o conhecimento, crescente e em expansão, iria aumentar o controle do homem sobre suas tendências antissociais e promover a cooperação e a unidade.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o filósofo francês Constantin François de Chassebeuf, conde de Volney (1757-1820)
Prezados leitores, sou viciada em café, ou para usar o palavreado que um psiquiatra utilizaria, meu sistema de recompensa cerebral é ativado pelo cheiro do café, pela experiência de sentar em um banco de padaria e tomá-lo enquanto leio um livro na hora do meu almoço. Já tentei parar porque meu dentista reclamava dos meus dentes empretecidos e porque o estímulo da cafeína prejudica meu sono. Permaneci na abstinência por cerca de três meses e depois reincidi no “crime”. De volta ao café e à dopamina que ele libera em meu cérebro, esse caminho do prazer parece ter se gravado nos meus neurônios para sempre e nem penso em tentar abandonar o vício. Talvez os malefícios para minha saúde superem os benefícios, mas o ritual do café e as sensações correlatas são uma rotina que se realiza na base do piloto automático. É um verdadeiro sistema autopoiético.
Faço tal confissão em meu humilde espaço, mas outro indivíduo muito mais importante que eu confessou seu vício escrevendo um livro em que o personagem principal, Alexey Ivanovitch, é um frequentador compulsivo de casas de jogo e cassinos. Fiódor Dostoiévski publicou O Jogador em 1866 e nele retratou a complexidade da mente de um viciado. Conforme o trecho que abre este artigo, o Sr. Ivanovitch não é um homem ignorante, incapaz de perceber o que está fazendo. Ele sabe muito bem que não consegue parar de jogar e a que níveis de torpeza ele chega ao dar vazão a sua pulsão pela jogatina. Apesar de não se eximir de culpa, ele se irrita com aqueles que vêm lhe dar lições de moral, como se todos esses bons cidadãos estivessem imunes à tentação das roletas e dos dados. Ora, ninguém está, justamente porque ter consciência de estar cometendo um ato vil não é suficiente para que a pessoa resista à tentação do banho de dopamina proporcionado pela compulsão. Ah, se a conscientização levasse à solução do problema! Quão inocente é pensar assim, em pleno século XXI, à luz do conhecimento que temos do funcionamento do cérebro e dos circuitos de recompensa nele criados.
No entanto, era assim que se pensava no século XVIII, no florescer do Iluminismo. O filósofo francês Constantin François de Chassebeuf, conde de Volney, citado na abertura deste artigo, considerava que uma nova era se abria para a humanidade. A possibilidade de preservação do conhecimento acumulado por meio de livros impressos eliminava o risco de a Europa cair em uma nova Idade das Trevas, como havia sido a Idade Média, em que a produção intelectual estagnara devido ao colapso do Império Romano e à destruição física de grande parte do legado civilizacional de Grécia e Roma. Com a difusão do conhecimento e o abandono dos mitos religiosos predominantes no mundo medievo, o ser humano pautaria seu comportamento por um código moral baseado no controle das compulsões instintivas pela razão. Ele perceberia que isso era o melhor para si e para a sociedade, de modo que todos agiriam em cooperação mútua para cada indivíduo atuar sem prejudicar a si mesmo nem aos outros, garantindo, no final das contas, o bem-estar geral.
Superação das superstições religiosas, expansão do conhecimento, aumento da racionalidade, diminuição e eliminação das práticas compulsivas, passionais e violentas. Receita infalível, não? Ainda mais em pleno século XXI, quando mediante alguns cliques no computador podemos nos informar por exemplo, sobre os efeitos nocivos do vício sobre o cérebro. Ou o que é o jogo patológico. E no entanto, o buraco parece ser mais embaixo, particularmente em um país como o Brasil, em que o uso médio diário da internet é de 9 horas e 32 minutos, de acordo com levantamento global do provedor Proxyrack. Isso nos faz ocupar o segundo lugar no ranking, atrás da África do Sul. E quanto ao uso de mídias sociais, cada brasileiro acessa em média 8,4 redes, o que nos coloca de novo em segundo lugar, ao lado da Indonésia e atrás da Índia. Somando-se a essa fixação dos brasileiros nas telas de celulares e de computadores a paixão pelo futebol e está pronto o cenário para a explosão das apostas on-line.
Explosão é o termo apropriado, considerando os números citados na abertura deste artigo. Temos uma Argentina e um Paraguai juntos, dentro do Brasil, em número de apostadores. E esses jogadores, por conta do seu passatempo estão endividados. Há casos relatados de pessoas que devem mais de 100.000 reais por causa de seguidas apostas fracassadas. O que fazer? Tratar os jogadores como doentes, acometidos de uma compulsão, incapazes de tomar decisões racionais? O governo federal parece ter dado um passo nesse sentido, anunciando que vai restringir a utilização do cartão do Bolsa Família para apostas, em vista do fato de que em agosto de 2024 os beneficiários do principal programa social do Brasil gastaram 3 bilhões de reais no mercado de apostas.
Ocorre que se formos por esse caminho de adotar uma atitude paternalista em relação a pessoas que “não sabem o que fazem”, como fica nossa autodeterminação? Afinal, se o auxílio monetário é um direito do cidadão e ao recebê-lo ele torna-se proprietário do dinheiro, como negar-lhe o direito de decidir o que fazer com ele? Será que o governo tem o direito de dizer às pessoas como elas devem dispor da sua renda? E se ficar decidido que algumas pessoas têm direito à autodeterminação e outras ao paternalismo, que critérios utilizar para classificar os indivíduos em uma ou outra categoria? Nível de endividamento? Nível de escolaridade? Nível de renda? Em última análise, qual será o preço da liberdade? Ter ou não uma certa dívida, um certo diploma e um certo salário?
Prezados leitores, os impactos dos jogadores sobre a sociedade brasileira começam agora a ser notados. Meu singelo expresso duplo não é nada tóxico comparado às apostas on-line que levam pessoas à ruína financeira, à deterioração das relações pessoais e até ao suicídio. Talvez o conde de Volney, se observasse a cena brasileira e de posse das suas convicções iluministas, diria que para haver jogadores responsáveis, basta que as pessoas sejam informadas da verdadeira natureza da jogatina, dos seus prós e contras e elas naturalmente controlarão seus desejos de apostar. De qualquer forma fica a dica: apostem com moderação, mesmo quando estejam ganhando. Nunca é demais lembrar que jogo não pode ser nada mais do que um passatempo inofensivo, não meio de investimento de economias. E para consolo dos pobres viciados, saibam que um dos grandes nomes da literatura mundial foi um jogador.