Ela era mais educada para os assuntos práticos do que a nobreza ou o clero, e estava mais bem equipada para comandar a sociedade na qual o dinheiro era o sangue pulsante. Ela via a pobreza como a punição da estupidez e sua própria riqueza como a justa recompensa pela diligência e inteligência. Não acreditava em um governo pelos sanscullotes; denunciava a interrupção do governo pelas revoltas do proletariado como uma impertinência intolerável. Ficava resolvido que quando o som e a fúria da revolução tivessem amainado, a burguesia seria a comandante do Estado.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a burguesia francesana época da Revolução Francesa
Morador da Brasilândia na Zona Norte, o motoboy Willian Miguel, de 27 anos, que faz entregas de aplicativo de delivery de comida há quatro anos, também foi atraído pelas promessas do discurso do ex-coach.
– O mais importante são as ideias empresariais dele, a visão de negócio – afirma Willian, que já teve carteira assinada quando fazia entrega de medicamentos para uma rede de farmácias e ganhava, segundo ele, um quarto da renda atual. – Os ideais do Boulos e da esquerda, do Lula, é o foco na CLT. Só que a gente veio para isso (os aplicativos) já para sair da CLT. A carteira tem as suas vantagens, mas não são totalmente boas. Metade do salário vai só para desconto de imposto (a alíquota máxima é de 27,3%). Deveria ser opção do trabalhador depositar, mas não ser obrigado – opina o motoboy.
Trecho retirado do artigo “Foco no voto do empreendedor”, publicado no jornal o Globo de 27 de outubro, sobre o discurso de Pablo Marçal enfatizando a prosperidade durante a campanha à prefeitura de São Paulo em 2024.
A USP faz há anos pesquisas, das quais participo, que dissecam o tamanho da devastação psíquica que o discurso do empreendedorismo produz nas pessoas. O você contra todo mundo, sem ajuda de ninguém. O todo mundo em competição o tempo todo. Pessoas em situação de precariedade, de vulnerabilidade econômica, obrigadas a serem empreendedoras de seu próprio sofrimento. […] O que precisamos é mostrar uma outra gramática dos vínculos sociais. A de solidariedade real. […] Não transformar o trabalhador em empreendedor sufocado pelo capitalismo de plataforma, que o fará trabalhar como um desesperado para não conseguir nada, sem garantia alguma.
Trecho retirado de uma entrevista do professor de Filosofia da USP Vladimir Safatle, publicada no jornal o Globo de 27 de outubro
Prezados leitores, confesso ter um grande medo de motoboys. Quando eu os vejo no cruzamento de ruas sei que nunca pararão no sinal vermelho e por isso preciso estar sempre alerta para que quando seja tempo de atravessar na faixa de pedestres eu o faça sempre antes de um deles acelerar e eu correr o risco de ser atropelada por um motoqueiro que não pode perder tempo e esperar que o sinal se torne verde. Vida muito louca, a deles, que têm pressa para fazer entregas, pois quanto mais entregas mais dinheiro. E a minha, que vivo angustiada em imaginar que daqui a alguns anos não terei os reflexos necessários para fugir dos motoqueiros como consigo fazer hoje.
Apesar do meu medo e raiva pelo comportamento totalmente transgressivo das leis da boa convivência no trânsito, quando os vejo sentados na calçada consultando seu celular para verem se chegou algum pedido de entrega, fico imaginando que por mais que a aceleração incessante deles me deixe ansiosa, fazer do smartphone um instrumento de trabalho deve ser fonte de maior ansiedade ainda, pois o piscar da luz na tela passa a guiar todos os seus passos. Enfim, nutro um sentimento negativo por motoboys, mas não posso deixar de entender o estresse sob o qual vivem.
Nessas últimas eleições municipais, que terminaram no domingo dia 27, descobri uma outra coisa a respeito dos motoboys que trabalham para aplicativos de entrega de mercadorias. Eles são colocados na categoria social de empreendedores periféricos, pessoas como Willian Miguel, cujos princípios morais e filosóficos ele expôs ao repórter do jornal O Globo, conforme o trecho que abre este artigo. Willian é periférico porque mora na periferia de São Paulo, no bairro da Brasilândia e é empreendedor porque ele tem a mentalidade e a atitude de um legítimo homem de negócios, aquele que na Revolução Francesa era chamado de burguês. Ele quer ter liberdade para trabalhar com entregas do modo mais conveniente para ele, isto é do modo que lhe permita ganhar o máximo possível.
Para que esse objetivo pecuniário se concretize ele não quer saber do governo interferindo na vida dele, tomando-lhe o dinheiro na forma de imposto de renda ou contribuição previdenciária. Sem registro em carteira, por favor, sem CLT, sem vínculo formal de emprego. Isso tudo é uma grande aporrinhação porque se Willian pagasse tudo isso ele tiraria um quarto do que tira hoje. O empreendedorismo de Willian é o empreendedorismo dos motoqueiros que cruzam dia e noite as ruas de Sâo Paulo e que nos amedrontam com sua liberdade de desrespeitar sinais vermelhos, de virar em locais proibidos, de andar pela calçada e pelas ciclofaixas e ciclovias.
É verdade que os empreendedores periféricos arriscam sua vida e arriscam a vida de todos com seu comportamento arrojado na direção. Mas a bem da verdade, o risco é da essência do empreendedorismo e se Elon Musk não tivesse se arriscado a perder bilhões de dólares em um lançamento fracassado do foguete Starship, em abril de 2023, sua empresa Space X não estaria agora se preparando para o sexto voo da nave que Musk pretende um dia que chegue a Marte para iniciar a colonização daquele planeta. Então devemos celebrar os Willians Migueis de Sâo Paulo como Elon Musk é celebrado nos Estados Unidos, certo? Assim fez Pablo Marçal, o empresário goiano que no primeiro turno das eleições à prefeitura de São Paulo teve 1.719.274 votos e que dizia que Jesus Cristo não distribuiu pão, ele o multiplicou, para desconstruir o discurso da esquerda de justiça social. Se nem Jesus Cristo dava nada a ninguém porque eu devo dar alguma coisa ao governo pagando impostos e contribuições previdenciárias e porque o governo haverá de dar alguma coisa caso impostos e contribuições previdenciárias não sejam arrecadados?
Para o filósofo Vladimir Safatle, aceitar essa lógica de que não há justiça social nem possível nem desejável e a figura do empreendedor periférico como personagem a ser louvado e encorajado é o suicídio da esquerda no Brasil. No trecho que abre este artigo, ele revela o que há por trás desse homem livre das amarras do governo, livre para trabalhar o quanto quiser, a qualquer horário do dia e dia da semana, livre para ficar com todos os seus rendimentos para si sem ter que compartilhar nada com o Estado opressor.
Na visão de Saflate, o empreendedor periférico é um sujeito que não conta com ninguém e só conta consigo mesmo. O mundo está contra ele, inclusive os pedestres como eu, que não gostam do comportamento temerários dos adeptos da teologia da prosperidade. E ao contrário de homens de negócio como Elon Musk, cujo risco é calculado, mensurado e embutido no preço dos produtos e serviços que ele oferece, o risco da vida louca dos motoboys não é compartilhado com ninguém nem repassado a ninguém: se o motoboy tem um acidente de trânsito ele para de trabalhar e fica sem ganhar. Como não é registrado e não paga contribuições previdenciárias, não terá nenhuma renda durante o período de inatividade e será um sujeito de sorte se conseguir receber tratamento médico de emergência em uma instituição de ensino e pesquisa, como o Hospital das Clínicas.
Em suma, o empreendedor periférico é na verdade um sujeito vulnerável, que por qualquer tropicão na rua pode ter sua vida totalmente desestabilizada. Daí que Saflate defende na entrevista dada ao Globo que a esquerda brasileira evite cair na armadilha do culto ao empreendedor periférico e proponha uma narrativa alternativa fundada na solidariedade real dos vínculos sociais viabilizada pelo Estado, que estabelece regras para o trabalho de forma que aqueles que não tem poder financeiro suficiente para garantir sua plena prosperidade material possam ter o necessário para a vida com dignidade.
Belas palavras do eminente filósofo, mas ele mesmo reconhece que a teologia da prosperidade defendida pela direita fincou raízes no Brasil do século XXI e eis que somos todos burgueses em nosso país, tais como aqueles do século XVIII na França descritos por Will Durant no trecho que abre este artigo. Burgueses confiantes na nossa capacidade intelectual e moral, burgueses que acumularam riqueza por mérito próprio, e a quem devem ser dadas as rédeas do governo do país para que a liberdade, a prosperidade e a propriedade frutifiquem.
Prezados leitores, façamos como Willian Miguel e tantos outros empreendedores periféricos e sigamos a cartilha espiritual de Pablo Marçal: mudemos nosso mindset e tenhamos a certeza de que nosso sucesso só depende de nós e de que se fracassarmos a culpa é da nossa estupidez. Se cairmos de uma moto em uma grande avenida de São Paulo, basta levantarmo-nos e seguirmos em frente, mesmo que seja mancando, se arrastando ou na maca desacordados. O importante é sermos donos do nosso próprio destino, sem empecilhos, principalmente do governo, o grande elefante na sala. Multipliquemos nossos pães e seremos todos burgueses!