Brienne tornou-se uma prova formativa para o garoto de dez anos, tão longe de casa em um ambiente estranho e rígido. Os outros alunos não perdoavam seu orgulho e temperamento, que pareciam tão desproporcionais a sua nobreza obscura. “Eu sofri infinitamente com as gozações dos meus colegas, que zombavam de mim por ser estrangeiro.” O jovem desgarrado recolheu-se em si mesmo, aos estudos, aos livros e aos sonhos. Sua pré-disposição a ser taciturno aumentou; ele falava pouco, não confiava em ninguém e mantinha-se afastado de um mundo que parecia organizado para atormentá-lo.
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a infância de Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, vivida em uma academia militar
A virtude consiste na coragem e na força; … a energia é a vida da alma… O homem forte é bom; somente o homem fraco é ruim.
Trecho de um ensaio escrito por Napoleão em 1791 intitulado “Quais verdades ou sentimentos devem ser inculcados nos homens para que sejam felizes”
De um lado temos a moralidade do senhor, na qual o bem conota a independência, a generosidade, a autossuficiência, e que tais; de fato, todas as virtudes que pertencem ao homem de alma grande de Aristóteles. Os defeitos opostos são a subserviência, a mesquinhez, a timidez e assim por diante, e essas qualidades são ruins.
Trecho retirado do livro “Wisdom of the West”, escrito pelo filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970), sobre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Prezados leitores. Imaginem um menino magro, baixinho, de compleição malsã, que falava um francês claudicante, vindo de um rincão da Europa, a Córsega, uma ilha que havia sido transferida por Gênova à França em 1768, portanto um ano antes de este menino nascer, o que fazia dele um francês por acaso. Imaginem também esse menino apresentando-se como nobre, quando na verdade seu pai havia conseguido um certificado de nobreza reconhecido pelo governo francês, pois a origem da sua família encontrava-se na Toscana. Imaginem por último esse menino em uma academia militar frequentada somente pela nobreza francesa. Pronto, estão postas as condições para o assédio de um aluno que destoava daqueles que o rodeavam. Esse menino esquisito chamava-se Napoleão Buonaparte, filho de Carlo e Letícia, italianos antes de 1768 e franceses depois.
E assim ocorreu durante os cinco anos em que Napoleão passou em Brienne, antes de seguir para a École Militaire em Paris. Conforme o trecho que abre este artigo, pelo fato de ter todas as características mencionadas acima, o jovem Napoleão sofreu gozações o tempo todo e isso o levou a refugiar-se nos estudos e nos livros, a desconfiar de todos, a ser sempre triste e às vezes ter pensamentos suicidas e a ver o mundo como conspirando contra ele. Foi seu primeiro contato com a crueldade, a violência, a covardia das pessoas que se unem para eleger um bode expiatório, em suma com a natureza humana tal como ela é, independente dos ideais cultivados pela sociedade. O que motivava seus colegas a tratar o jovem corso assim? Seria a falta de uma ética religiosa de amor e de respeito mútuos que fosse além da mera aparência dos ritos e dos sacramentos que faziam parte da rotina de todos os membros da Igreja Católica? Seria falta de racionalidade, que os levava a enxergar a vida sob a ótica arbitrária dos seus preconceitos de classe e a dar vazão a seus instintos mais baixos por serem incapazes de controlar suas emoções e atuar de maneira objetiva e justa?
Qualquer que fosse a razão do bullying, Napoleão Bonaparte acabou tirando suas próprias lições éticas de sua vivência entre a juventude aristocrática francesa da academia militar, seguindo uma terceira via que levava em conta a fragilidade do ideal cristão e do ideal racional a respeito do homem: longe das premissas cristãs de humildade e doação ao próximo; mas longe também das premissas iluministas e racionais sobre uma natureza humana que pode ser transformada pela educação e pelo controle dos desejos, levando ao nascimento de um homem imparcial, controlado, que não faz aos outros aquilo que não quer que façam com ele, a fim de que todos possam viver em paz. A terceira via da moral napoleoniana é a da força e da vontade. Conforme o trecho citado do seu ensaio de 1791, apresentado à Academia de Lyons, o homem bom é o homem forte e com coragem de fazer coisas, indômito frente às dificuldades da vida o homem mau é o homem fraco, incapaz de fazer nada, incapaz de dedicar-se a qualquer empreendimento porque tem medo de tudo.
De acordo com Will Durant e Ariel Durant, em seu livro “The Age of Napoleon”, o corso de um metro e sessenta e nove de altura foi um precursor da vontade de poder de Friedrich Nieztsche. Conforme o trecho que abre este artigo, Nieztsche considerava como virtuoso todo homem que age autonomamente, confiando em si mesmo e sem depender de ninguém e como homem carente de virtudes aquele que é tímido, incapaz de quaisquer iniciativa e por isso subserviente, pronto para obedecer ao outro que dita as regras porque tem o ímpeto da ação. Nesse sentido, conforme Bertrand Russell explica em “Wisdom of the West”, o filósofo alemão descartava toda moral de fundamento religioso, pois qualquer que seja ela, inclusive e principalmente a cristã, será sempre a moralidade dos escravos, daqueles que são dóceis e se compadecem do sofrimento alheio, não daqueles que atuam no mundo para moldá-lo de acordo com sua vontade e os objetivos que pretende alcançar.
Assim, para os adeptos do triunfo da vontade, o poder se justifica por si mesmo se ele é exercido em sua plenitude e se seu exercício leva à imposição bem-sucedida da vontade de um indivíduo sobre o outro ou sobre os outros para a construção de algo. O julgamento moral que se pode passar a respeito do exercício do poder não é se ele deu a cada um o que é seu ou contribuiu para a prosperidade e a felicidade de todos, mas se ele foi bem-sucedido, isto é, se a vontade de poder conseguiu o que almejava. Não é de se admirar que os proponentes de tal moralidade sejam indiferentes ao sofrimento de muitos e que Napoleão tenha perseguido seus ideais imperialistas ao custo total entre 3.250.000 e 6.500.000 de mortos, incluindo civis e militares, de acordo com o site Wikipedia. Só na França, as Guerras Napoleônicas, entre 1800 e 1815, ceifaram a vida de 1/60 avos da população, o que teve um efeito nefasto sobre a taxa de natalidade, conforme a Enciclopédia Britânica.
Prezados leitores, o triunfo da vontade do menino corso assediado em Brienne o fez sobreviver à infância infeliz, a enfurnar-se nos livros para preparar-se para a vida adulta e a prosperar, imprimindo sua marca no mundo. A trajetória de Napoleão, cuja carreira para Friedrich Nietzsche foi a única justificativa para o sangue derramado durante a Revolução Francesa, exemplifica mais uma vez que o poder não pode ser exercido de acordo com princípios cristãos. É preciso impor sua vontade ao outro, sem se preocupar com as consequências, mas com foco intenso na concretização dos planos. A questão permanece, no entanto: como lidar com os efeitos colaterais dos empreendimentos bem-sucedidos? A moralidade da vontade de poder não nos dá tais respostas. Mas é inegável que ela permite ao indivíduo sobreviver e triunfar frente aos seus inimigos.