“Acho que há um desafio específico para as marcas tradicionais, como o New York Times e o Wall Street Journal,” disse Tucker, acrescentando “Há não muito tempo, como eu digo, nós controlávamos as notícias. Éramos os porteiros, e também basicamente controlávamos os fatos também.” Se foi dito no Wall Street Journal, no New York Times, então é um fato,” ela continuou, acrescentando, “Hoje em dia, as pessoas podem recorrer a todo tipo de diferentes fontes de notícias e elas estão questionando mais o que estamos dizendo.”
Fala de Emma Tucker, editora-chefe do Wall Street Journal em um painel de discussões intitulado “Defending Truth” realizado no Fórum Econômico Mundial em janeiro de 2024
“A velha aristocracia,” disse Napoleão, “teria sobrevivido se tivesses tido conhecimento suficiente para se tornar expert nos materiais impressos… O advento do canhão matou o sistema feudal; a tinta irá matar o sistema moderno.”
Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)
A deterioração do debate público, com o uso crescente da violência e das mentiras mais deslavadas por candidatos, apontam especialistas, é característica central tanto das eleições deste ano quanto do próprio estado das democracias liberais nos dois lados do Atlântico. E a denúncia e a condenação da barbárie, alertam, podem não ser suficientes para estancar a sangria.
Trecho retirado do artigo “A deterioração do debate”, publicado no jornal O Globo em 6 de outubro
Prezados leitores, foram exatos 56.853 votos e o post de um laudo médico falso sobre um surto psicótico de Guilherme Boulos em virtude da suposta ingestão de drogas que nos separaram de Pablo Marçal para a disputa do segundo turno das eleições para a prefeitura de São Paulo. Sem eles, teríamos tido o homem dos cortes como candidato, corroborando aquilo que falei no artigo “No tempo dos ordálios e das cadeiradas”, que estávamos utilizando como critério para a escolha de dirigentes políticos a aprovação em provas irracionais, isto é, provas que prescindem do diálogo e da argumentação para decidir quem é melhor. Ufa! Dessa vez nos livramos do perigo, mas será que Marçal não utilizará sua habilidade no uso dos recursos das mídias sociais em outras eleições?
Afinal, a manipulação da comunicação de massa para fins políticos não é algo novo, como mostra o trecho que abre este artigo, em que Napoleão atribui a derrota da aristocracia na Revolução Francesa ao fato de que seus membros não souberam fazer uso da imprensa para defender seus pontos de vista. Se tivesse contratado jornalistas para escrever libelos atacando a burguesia e os sans-culottes, a aristocracia teria denegrido a imagem desses grupos sociais como a imagem dela foi denegrida pelo sem número de panfletos que foram escritos e canções que foram compostas contra o povo de sangue azul. Como resposta às acusações levianas de que o rei Luís XVI era um corno manso, a rainha era uma puta e o herdeiro do trono um bastardo, os jornalistas a serviço dos aristocratas poderiam ter levantado os podres dos líderes da Revolução, como Robespierre (1758-1794), Danton (1759-1794) e Marat (1743-1793) e se não tivessem encontrado nada de espetacular poderiam ter inventado, como fizeram os jornalistas a serviço do “povo”.
Afinal, entre o começo da Revolução Francesa, em 1789, e a implantação do Terror em 1792, que durou até 1794, a liberdade de expressão era tamanha que as mentiras deslavadas eram publicadas lado a lado com as notícias sobre os últimos acontecimentos. Para Napoleão Bonaparte (1769-1821), os próceres do antigo regime não souberam usar as armas que seus inimigos usaram para influenciar a população em geral e fazê-la seguir suas ordens. Foram pintados como vilões, culpados de todas as mazelas da população, eleitos como bodes expiatórios e assim destruídos física, e economicamente em benefício dos patrocinadores dos panfletistas, a burguesia.
Os excessos da orgia libertária acabaram sendo eliminados quando uma ordem genuinamente liberal se instalou na França e nos países da Europa Ocidental que se inspiraram nela para reformarem seus sistemas políticos. Como nos ensina John Rawls em “A Theory of Justice”, em um regime liberal todos têm direito de participar do debate público e de expor suas ideias, mas as desavenças só podem ser produtivas e levar à escolha das políticas que melhor atendem o bem comum sob a inspiração do conceito de oposição leal, mencionado na página 196 da edição revisada da obra: todos os participantes do jogo político aderem às regras e não abusam delas para tirar vantagem do sistema.
Sob essa perspectiva, um candidato como Pablo Marçal, que se deixa ser entrevistado não para responder às perguntas dos jornalistas, mas para aparecer em um veículo da imprensa e usar a imagem em suas mídias sociais, viola as regras do jogo democrático porque ele não quer debater, mas “causar” e ataca a imprensa para lustrar suas credenciais de ser antissistema. Afinal, se a imprensa é um dos pilares da ordem liberal-democrática, por viabilizar o debate dentro de certos parâmetros de boa-fé, em que os participantes estão dispostos a ouvir, a rebater e a propor, utilizar a imprensa para desconstruí-la como “esquerdista” ou “tendenciosa” é uma maneira de mostrar-se um outsider, que não participa da suposta podridão reinante.
Eis um novo ponto de inflexão no Ocidente: começando com a profusão de materiais impressos durante a Revolução Francesa, passamos pela sobriedade liberal dos órgãos de imprensa como instrumentos da disputa política nos limites da lealdade e da boa-fé. Em pleno século XXI, o avanço da internet como meio de comunicação permitiu que completássemos o ciclo e voltássemos ao começo anárquico. Como explica Emma Tucker no trecho que abre este artigo, hoje há uma infinidade de fontes de informação e os órgãos de imprensa tradicionais, que exerciam o monopólio sobre o que era o fato e o que era a notícia, estão cada vez mais questionados. Qual será o efeito dessa volta à profusão de meios de comunicação?
Haverá a deterioração irremediável do debate público, como afirma o artigo do Globo, pela falta dos porteiros, representados por órgãos de imprensa que gozavam de credibilidade e que estabeleciam o que era objeto de discurso e o que não era objeto de discurso? Afinal, se não há os porteiros que dizem que fatos serão considerados como objeto de reflexão por parte daqueles que se propõe a apresentar propostas de políticas públicas, como fica a discussão? Vira um vale-tudo? Fica inviabilizada pelo fato de os participantes não se acordarem nem sobre quais são os fatos e as notícias sobre os fatos, não dispondo, portanto, de princípios comuns sobre os quais estruturar seus argumentos? Afinal como decidir sobre o que estamos falando se não sabemos o que é fato e o que é ficção? E como chegarmos a conclusões conjuntas, a consensos se não concordamos sobre os fundamentos da discussão e falamos sobre coisas diferentes?
Prezados leitores, enquanto não encontrarmos novos parâmetros para lidarmos como as novas mídias sociais, ficaremos à mercê das cadeiradas, dos relatórios falsos e dos vídeos curtos descontextualizados. Para isso, precisamos encontrar novos porteiros que estabeleçam quem pode entrar e quem pode sair do debate público, pois os antigos porteiros perderam toda a credibilidade. Será o Poder Judiciário estabelecendo censura prévia? Será o povo livremente escolhendo o que consumir em termos de notícias na internet, separando por si só o joio do trigo, decidindo de maneira autônoma em quem confiar e de quem se afastar? Serão os empresários proprietários de veículos de mídia social, proibindo perfis anônimos? De qualquer forma, cabe a nós fazermos um exercício de imaginação coletiva para criá-los e presentificá-los. Do contrário, a ordem liberal-democrática sangrará até a morte.