A prova irracional era constituída pelos ordálios (do alemão Urteil, sentença) ou juízos de Deus. O ordálio tinha um caráter mágico e não investigativo: era a prova pela qual se invocava a divina providência para intervir. […] o acusado submetia-se à prova e passar pela prova equivalia a uma declaração de inocência. Eram dessa natureza a prova do ferro em brasa, da água fervendo, água fria (ou do afundamento), do cadáver (conseguir cortá-lo sem fazê-lo sangrar). Eram aquilo que se chama passar pela prova de fogo.
Trecho retirado do livro O Direito na História, de José Reinaldo de Lima Lopes
A liberdade é uma comida substanciosa, mas ela necessita de uma digestão robusta… Eu rio desses povos aviltados que se revoltam por causa de uma palavra de um intrigante; que ousam falar de liberdade sendo totalmente ignorantes sobre o que ela significa; e que… imaginam que, para ser livre, é suficiente ser um rebelde. Liberdade sagrada e de alma elevada! Se pelo menos esses pobres homens pudessem conhecer você; se eles ao menos pudessem aprender o preço pelo qual você é conquistada e mantida; se ao menos pudesse ser ensinado a eles o quão mais rígidas são suas leis do que o jugo do tirano!
Trecho retirado do livro Considerações sobre o governo da Polônia (1772), escrito por Jean Jacques Rousseau (1712-1778) escritor e filósofo nascido em Genebra, na Suíça
José Luiz Datena: Eu te perdoei, agora não perdoo mais.
Pablo Marçal: O Datena não sabe nem o que ele fala aqui. Todos têm marqueteiros e gastam milhões e eles ficam inventando conversa todas as vezes. Mas o Brasil quer saber, São Paulo quer saber, que hora que você vai parar. Você não respondeu à pergunta. A gente quer saber, você é um arregão. Você atravessou o debate esses dias para me dar um tapa e falou que você queria ter feito. Você não é homem nem pra fazer isso. Não é homem…
José Luiz Datena: Seu filho da puta!
Diálogo entre os candidatos à prefeitura de São Paulo em 15 de setembro, um pouco antes de José Luiz Datena dar uma cadeirada em Pablo Marçal
Prezados leitores, estava eu tranquilamente lendo na noite de domingo quando,ao checar o aplicativo do WhatsApp, vi que havia uma mensagem de um morador do meu prédio na qual ele postava o vídeo da famosa cadeirada que José Luiz Datena deu em Pablo Marçal. A princípio não acreditei naquilo, achei que fosse uma montagem, mas imediatamente confirmei no site de notícias UOL que era a pura verdade. Datena, perdendo as estribeiras, partiu para cima de Marçal. É uma ótima cena para rir, para virar memes, para gerar piadas a serem compartilhadas nas mídias sociais. Por outro lado, independentemente de saber quem estava errado e quem estava certo na contenda, há algo de sinistro nesse comportamento que nos leva a colocar várias questões. Será que nossa democracia está chegando à exaustão? Será que estamos completando um ciclo em que gozamos de certas liberdades que ficarão para trás? Que mundo novo nos aguarda, se esse ciclo se encerrar de fato? Tentarei responder a essas perguntas à luz das lições de filosofia política de Jean Jacques Rousseau e da história do Direito que aprendi nos bancos da faculdade.
Jean-Jacques Rousseau foi fonte de inspiração para Robespierre (1758-1794), líder dos jacobinos na Revolução Francesa, porque Rousseau havia se insurgido contra os reis e defendido a soberania do povo, cuja vontade geral deveria sempre prevalecer. Afinal, o homem nasce livre e se ele está acorrentado em todos os lugares, como disse Rousseau no Contrato Social, ele tem direito de buscar a liberdade para escolher organizar a sociedade por meio da decisão da maioria e abolir assim os privilégios de uma minoria de aristocratas que controlava as instituições e as usava para tolher a atuação livre das pessoas.
No entanto, à medida que Rousseau foi ficando mais velho e mais sábio, ele passou a acrescentar nuances ao seu pensamento, como mostra o trecho que abre este artigo, retirado de um livro publicado seis anos antes de o filósofo morrer. A liberdade é uma graça a ser desfrutada, mas requer autodisciplina, formação moral e inteligência para ser exercida, do contrário ela não trará benefícios aos seus usuários. Se toda pessoa se sentir no direito de rebelar-se contra o status quo porque está descontente com a vida ou deixou-se levar pelas palavras incendiárias de alguém que faz críticas com muita facilidade, o resultado pode ser o caos, a violência e a perda da liberdade.
Daí que a liberdade deve ser cultivada como quem cultiva uma frágil planta que a todo tempo corre o risco de morrer, vítima de geada, de seca, de pragas. O exercício da liberdade deve se basear na ação virtuosa e sensata de homens que não farão uso da sua razão para defender seus desejos, por mais corruptos que sejam, mas terão uma bússola moral dentro de si mesmos que os levarão a atuar de maneira ética na sociedade, para não prejudicar nem oprimir ninguém. Nesse sentido, ser livre é mais trabalhoso, porque exige que cada indivíduo assuma a responsabilidade por suas escolhas morais e pelo efeito que elas têm nos outros, ao contrário do escravo, que simplesmente obedece e não pode ser culpado de nada.
As palavras do pensador genebrino fazem sentido quando assistimos ao vale-tudo que se instaurou na campanha para a prefeitura de São Paulo. Os debates organizados pelos órgãos de imprensa são uma oportunidade de exercício da liberdade de expressão, do poder de raciocinar, de elaborar argumentos, de apresentá-los aos jornalistas e aos outros candidatos e de tentar convencê-los ou ao menos fazê-los reformular suas próprias ideais à luz das contribuições dadas pelos adversários. O que se vê na prática é a liberdade sendo exercida sem inteligência e sem virtude: no lugar de argumentos sobre políticas, frases de efeito como aquela de Marçal sobre Jesus Cristo que citei neste meu humilde espaço há duas semanas; no lugar de um verdadeiro diálogo de boa fé em que os interlocutores procuram juntos chegar a uma conclusão, uma troca de ofensas pessoais com o uso de um vocabulário que não poderia estar presente naquele recinto de pessoas com ensino superior que deveriam dar um exemplo aos telespectadores e eleitores em geral. O “arregão” de Marçal e o “filho da puta” de Datena mostram que aquele antigo ideal de debates em torno das melhores propostas para administrar a cidade ficou para trás. O que ficou em seu lugar? A cadeirada?
Se a cadeirada se tornar o modus operandi predominante de políticos, isso será sinal da violência engendrada quando a liberdade é exercida sem pejos, como alertou Jean-Jacques Rousseau. Mais que isso, ela pode ser sinal de que voltamos a um modo de dizer o que é certo e o que é errado com base nas provas irracionais descritas por José Reinaldo de Lima Lopes em sua história do Direito, que tinham o nome de ordálios. Como mostra o trecho que abre este artigo, os ordálios eram provas físicas aplicadas para decidir sobre a inocência ou a culpabilidade de um acusado. Não importava ao juiz tentar averiguar o que ocorrera, ouvir a versão do acusador e do acusado e formar assim seu convencimento ponderando as afirmações de uns e de outros. Bastava submeter o acusado a uma prova de fogo e se ele se saísse bem era considerado inocente, independentemente do que de fato fizera.
Assim, jogar uma cadeira em um candidato concorrente pode ser uma maneira disponível a nós eleitores de exercermos nosso direito de voto e escolhermos o melhor. Já que não há diálogo, não há busca de esclarecimento e convencimento, a única maneira de decidir a questão é apelar aos ordálios do século XXI. Se o indivíduo que recebeu a cadeirada não se machucar isso significa que ele é o melhor, porque Deus interveio e o impediu de sofrer danos físicos, ou como diria Pablo Marçal ele é HOMEM, ao contrário de José Luiz Datena. Caso Pablo Marçal tenha votos suficientes para participar do segundo turno das eleições isso significa que na prática os paulistanos já estão adotando as provas irracionais para decidir quem será um bom prefeito. Um novo ciclo pode estar se abrindo para nós: o ciclo dos ordálios ou será que é o ciclo da tirania, advinda quando o povo abusa da liberdade?
Prezados leitores, não nos esqueçamos que o preço da liberdade é a eterna vigilância e que participar de corrida do mau gosto em prol da liberdade de podermos dar boas risadas dos arregões e dos filhos da puta pode nos custar caro no longo prazo, apesar de ser divertido no curto prazo.