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Liberdade de expressão para quê?

Posted by on 14/08/2024

Não posso enaltecer uma virtude fugidia e enclausurada, não exercida e sem fôlego, que nunca se aventura e encara seus adversários, mas move-se sorrateiramente para fora da corrida… Dê-me a liberdade de saber, de falar e de argumentar livremente de acordo com minha consciência, acima de todas as liberdades… Mesmo que todo os ventos da doutrina fossem soltos para soprarem na Terra, de modo que a Verdade esteja em campo, nós praticamos um mal, concedendo licenças e proibindo, ao duvidar da sua força. Deixe que a Verdade e a Mentira lutem corpo a corpo; quem alguma vez viu a Verdade ser prejudicada em um encontro aberto e livre?

Trecho retirado do livro “The Age of Louis XIV” escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), citando a fala do poeta inglês John Milton (1608-1674) defendendo a liberdade de expressão

Podemos partir do pressuposto de que um regime democrático requer liberdade de expressão e de associação, liberdade de pensamento e de consciência. […] Em que pese tal arranjo não garantir que haverá racionalidade, na sua ausência parece certo que o rumo mais razoável será rejeitado em favor de políticas perseguidas por interesses especiais. […] Todos os cidadãos devem ter os meios de ser informados sobre as questões políticas. Eles devem estar em uma posição tal que lhes permita avaliar como as propostas afetam seu bem-estar e quais políticas promovem sua concepção de bem público. […] As liberdades protegidas pelo princípio da participação perdem muito do seu valor sempre que se permite àqueles que têm mais meios particulares utilizar suas vantagens para controlar o rumo do debate público. […]

Trecho retirado do livro “A Theory of Justice”, do filósofo americano John Rawls (1921-2002)

    Prezados leitores, aula de dança para crianças em uma escola primária ao som de Taylor Swift, na cidade de Southport, 27 quilômetros ao norte de Liverpool, na Inglaterra, em 29 de julho. Um homem entra no recinto e esfaqueia várias das pessoas presentes, matando três crianças, Bebe King de seis anos, Elsie Dot Stancombe de sete anos e Alice da Silva Aguiar, de nove anos. Oito outras crianças e mais dois adultos são feridos. Rumores começam imediatamente a se espalhar nas mídias sociais de que o assassino era um imigrante recém-chegado em um barco inflável, desses que são usados para atravessar ilegalmente o Canal da Mancha. A polícia demora vários dias para divulgar o nome do culpado, o que faz as pessoas presumirem que não se tratava de um inglês branco.

    Finalmente a polícia divulga que o assassino é um adolescente de 17 anos nascido no País de Gales, portanto um cidadão britânico, filho de imigrantes de Ruanda. Trocas de informações não verificadas pelas mídias sociais, que incluíram afirmar que o assassino era muçulmano, têm seu efeito sobre o ânimo das pessoas: em 30 de outubro um grupo de homens brancos reúne-se em torno de uma mesquita em Southport, atacando-a e na sexta-feira dia 2 ocorrem tumultos em várias cidades da Inglaterra, como Leeds, Newcastle e Birmingham, incluindo incêndios, saques, ataques a pessoas. Os tumultos duram até dia 5 de agosto e o saldo final é de 130 policiais lesionados e 1024 pessoas presas (575 delas já denunciadas).

    O governo do primeiro-ministro Keir Starmer acusa grupos de ultradireita de espalhar informações erradas online para atiçar os tumultos e promete um combate duro contra quem encaminhar mensagens que veiculem informações erradas ou desinformação (isto é, informações falsas criadas deliberadamente para prejudicar alguém) por qualquer plataforma social. Mais um típico exemplo do efeito nefasto da troca desenfreada de informações nas mídias sociais, as quais precisam ser reguladas urgentemente, dirão muitos. No entanto, um outro ponto de vista é possível sobre a questão, que me proponho a expor neste meu humilde espaço, com base nas lições de John Rawls no século XX e de John Milton, no século XVII.

    Para John Rawls, teórico do liberalismo moderno, o regime democrático pressupõe a liberdade de expressão e de pensamento. De acordo com o trecho que abre este artigo, tais liberdades são condições necessárias, embora não suficientes, para que as decisões políticas sejam tomadas de maneira racional, isto é, de maneira que não haja a predominância dos interesses específicos de um grupo, mas se construa um consenso sobre o rumo a tomar após o confronto das diferentes ideias na arena pública. Para que haja um debate franco e de boa-fé, visando a formulação de políticas em prol do bem comum, é preciso que o cidadão possa ter acesso às informações sobre o que está acontecendo em sua cidade, Estado e país e com base nelas avaliar as propostas colocadas publicamente para tratar dos desafios que a sociedade enfrenta.

    Se, ao contrário, o cidadão é mal-informado ou se informações são dele omitidas por grupos de interesse para que ele opte por propostas que favorecem determinados grupos, acaba ocorrendo uma deturpação do debate público, que deixa de servir como instrumento de busca de consenso em torno da ideia do bem comum de todos e se torna instrumento de manipulação para que os interesses privados de uns prevaleçam sobre os interesses dos demais. Livre circulação de informações, liberdade para os cidadãos colocarem seus pontos de vista. Dessa maneira, todos juntos, imbuídos de um objetivo comum, que é o de lidar com problemas que afetam todos os membros da sociedade, ficam propensos à busca de consensos ao trocarem ideias e informações e acabam chegando à melhor solução possível, levando as necessidades de todos em consideração.

    Essa ideia do fluxo livre de ideias também está por trás da crítica que o poeta inglês, John Milton, autor de Paraíso Perdido, faz da censura governamental a livros e da necessidade de obtenção de licença de publicação. De acordo com o trecho que abre este artigo, Milton prefere que a Verdade vá a campo de peito aberto, apresente-se em face dos seus contendores. Sendo Verdade, ELA será robusta e prevalecerá contra a Mentira. Tratar a Verdade como uma criatura delicada, que precisa da proteção da limitação à liberdade de expressão para ser mantida, é o pior caminho a tomar, pois Ela só pode prevalecer de maneira duradoura se for testada nos embates com a Mentira, do contrário, enclausurada na bolha proporcionada pela censura, definhará pela falta de energia proporcionada pelo desafio colocado por seu contrário.

     Em suma, tanto para Milton, poeta que faz uso de alegoria, quanto para Rawls, quanto maior a circulação de ideias e informações, por mais que isso seja um processo de tentativa e erro, mais bem servido estará o bem comum, porque todos juntos discutindo franca e abertamente, cometendo erros, trilhando os inúmeros caminhos possíveis poderão ao final chegar ao consenso imaginado por Rawls, isto é, à melhor política pública para todos, ou à Verdade de Milton, a vencedora do duelo a céu aberto com a Mentira.

    À luz da importância enfatizada por John Rawls e por John Milton da liberdade de expressão e de pensamento, considero que apesar de todos os percalços desse turbilhão de informações geradas e consumidas a cada momento nas redes sociais, considero que a censura de conteúdo e a perseguição a usuários de redes sociais por suas publicações virtuais é contraproducente. Se aos cidadãos for negada a chance de participar do debate público, inclusive para dizer besteiras, ele acabará fazendo uso de outros meios mais físicos para fazer com que seja notado.

    Os tumultos podem ter acabado por ora na Inglaterra, mas se o governo impedir que as pessoas manifestem sua opinião sobre questões que as preocupam, como a imigração, elas mais cedo ou mais tarde voltarão às ruas para protestar contra decisões tomadas sem que tenham sido ouvidas. No frigir dos ovos, o melhor fact-checker disponível é aquele proporcionado pela maior circulação possível de informações pelo maior número de possível de pessoas e não por nenhuma agência governamental ou não governamental, que pode ter um interesse particular em realçar certas informações e omitir outras porque quer impor uma determinada política à sociedade sem consultar todos os seus membros.

    Prezados leitores, liberdade de expressão para quê? Para que algumas pessoas falem bobagens e mintam, isso é inevitável, mas principalmente para que a maioria das pessoas, expostas a toda sorte de ideias e informações, possam depois de muitas cabeçadas, aprender a separar o joio do trigo e chegar às conclusões necessárias para que o regime democrático possa continuar entregando resultados à população pela execução de políticas públicas. Apesar de todos os perigos, é só quando a Verdade se aventura e coloca sua cara para bater que ela amadurece e frutifica, permitindo que as decisões mais racionais possíveis a nós, pobres seres humanos, sejam tomadas.

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