[…] Bentham expôs aquele “princípio da maior quantidade de felicidade” ao qual John Stuart Mill em 1863 deu o nome de “utilitarismo”. É a maior quantidade de felicidade do maior número de pessoas que é a medida do certo e do errado.” De acordo com esse “princípio de utilidade” todas as propostas morais e políticas e as práticas devem ser julgadas, porque “a tarefa do governo é a de promover a felicidade da sociedade”. No longo prazo, ele pensava, o indivíduo obtém a maior quantidade de prazer ou a menor quantidade de dor sendo justo com os outros membros da sociedade.
Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)
Aqui a felicidade é considerada como significando o mesmo que o prazer. A função da lei é garantir que, ao perseguir seu próprio prazer ao máximo, ninguém deveria prejudicar essa mesma busca nos outros. Dessa maneira é atingida a maior quantidade de felicidade do maior número de pessoas. Esse era, em que pese todas as suas diferenças, o objetivo comum dos utilitaristas.
Trecho retirado de “Wisdom of the West”, do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o filósofo Jeremy Bentham (1748-1832)
Jan e Els ficaram casados durante quase cinco décadas. No início de junho, eles morreram juntos depois de dois médicos lhes terem ministrado uma medicação letal. Na Holanda, isso é conhecido como eutanásia dupla. É legal e é raro – mas a cada ano, mais casais holandeses escolhem terminar a vida dessa maneira.
Trecho de um artigo publicado no site da BBC em 28 de junho de 2024 intitulado “Morte juntos: por que um casal que tinha um casamento feliz decidiu parar de viver
Prezados leitores, há duas semanas revelei a vocês a inevitabilidade de eu perder meu emprego em virtude do progresso tecnológico que faz com que as máquinas trabalhem de maneira melhor e mais barata do que os seres humanos. A perda do emprego traz outras repercussões, entre elas a impossibilidade de se aposentar se o desempregado não consegue continuar pagando as contribuições previdenciárias até que cumpra os requisitos impostos pelo INSS. E tais requisitos são cada vez mais estritos. Para mulheres, 30 anos de contribuição e idade mínima de 62 anos são necessários para se conseguir o valor máximo de aposentadoria, que hoje está, em R$7.507,49, o que talvez permita cobrir as despesas com plano de saúde e as necessidades materiais básicas. E se o desempregado não conseguir fazer os pagamentos previdenciários? O que lhe restará?
Esta é uma pergunta para a qual nossas autoridades não nos oferecem resposta satisfatória. Em 2019, os eminentes deputados e senadores aprovaram uma reforma para tentar viabilizar financeiramente a previdência, mas não houve nenhuma atenção à elaboração e à execução de políticas que estimulem o emprego daquela parcela da população que já passou dos 50 anos e que precisa ter condições de chegar à linha de chegada para conseguir ter uma vida mais ou menos digna na terceira idade. Isso não é novidade no Brasil. Os escravos foram libertados pela monarquia em 1888 e a república nunca se preocupou em oferecer meios para que os ex-escravos tivessem acesso a serviços de saúde e educação que lhes permitissem viver uma nova vida longe do trabalho braçal nas lavouras. Qual será o expediente menos complexo de que nossas autoridades irão se valer para dar conta desses velhinhos desempregados e “desprevidenciados”? Velhinhos que não são pobres o suficiente para terem direito a benefícios assistenciais como o BCP-LOAS e nem ricos o suficiente para ao final da vida produtiva terem acumulado uma gorda poupança que lhes permita viver mais 30 anos viajando, dedicando-se a hobbies e a trabalhos voluntários?
Acredito que a solução que será encontrada será aquela proposta por países como a Holanda para lidar com a senescência, a eutanásia. Em, 2023, 9.068 pessoas morreram de eutanásia na terra das tulipas, dos moinhos e dos diques, o que corresponde a 5% do total de óbitos. A morte simultânea do casal Jan e Els, citado na abertura deste artigo, entra na estatística de 2024. Jan de 70 anos exerceu durante toda a vida ofícios que exigiam força física, como o descarregamento de mercadorias, e acabou adquirindo uma dor na coluna que uma cirurgia em 2003 não resolveu e que o obrigava a viver à base de analgésicos. Sua mulher Els, de 71 anos, havia sido professora e aposentou-se em 2018 quando começou a mostrar sinais de demência. A decisão de acabar com a vida foi tomada pelos dois de comum acordo e comunicada ao filho único. Ela resolvia vários problemas: acabava de vez com as dores insuportáveis de Jan, acabava com a angústia de Els de viver sabendo que sua demência só pioraria com os anos e a levaria a se tornar cada vez mais dependente, eximia o filho único de arcar com o fardo de cuidar de pais idosos e debilitados e economizava dinheiro para o Estado holandês, que não mais precisou pagar aposentadorias a duas pessoas que certamente precisariam ainda ser internadas em algum asilo financiado com dinheiro público.
Diminuindo a dor e os ônus de um grande número de partes envolvidas, a eutanásia parece satisfazer aos critérios do princípio da maior quantidade possível de felicidade ou princípio utilitarista do filósofo e jurista londrino Jeremy Bentham, conforme exposto no trecho que abre este artigo. Afinal, o exemplo concreto da morte do casal Jan e Els mostra que de um lado foi evitada a dor física e o desconforto mental por que os dois passariam se tivessem ficado vivos e de outro lado foi proporcionado um benefício ao filho, que pode agora levar uma vida tranquila sem ter ninguém doente sob sua dependência e um benefício ao Estado, que economizou dinheiro. E mais, ninguém foi prejudicado pela morte dos dois velhinhos. Sob essa perspectiva, a lei da eutanásia obedece ao princípio exposto por Bertrand Russell em sua exposição das ideias de Bentham de que a lei deve garantir que cada indivíduo possa seguir seu caminho rumo à felicidade e ao mesmo tempo permitir que todos os outros possam fazer a mesma coisa simultaneamente. Para Jan e Els, acabar com a vida era o caminho da felicidade pois evitava a dor inevitável à condição de decadência física em que se encontravam. O que pode haver de mal nisso se não o preconceito dos proponentes de uma moral de fundamento religioso que faz da vida um bem absoluto?
E no entanto, Bertrand Russell expõe algumas falhas na visão utilitarista. Ela foi utilizada pelos economistas liberais para justificar o laisser faire e o livre comércio em voga no século XIX. A ideia era que se a cada indivíduo fosse dada a liberdade de perseguir sua própria felicidade, em termos de busca de bens materiais, a sociedade como um todo sairia ganhando, porque ao final haveria a maior quantidade de felicidade possível para o maior número de pessoas possível. Como vimos quando tratamos da Revolução Industrial, o laisser faire teve um lado negro, pois permitiu a superexploração dos trabalhadores nas fábricas, exaurindo-os física e mentalmente. Jeremy Bentham pensava que a justiça para todos seria obtida se cada indivíduo ao calcular sua felicidade pensasse nela no longo prazo e no longo prazo é melhor que não prejudiquemos os outros membros da sociedade, porque isso tem repercussões negativas para nós.
No entanto, será que o ser humano consegue agir cotidianamente e tomar decisões sobre o que fazer pensando no longo prazo? Será que ele tem informações suficientes sobre o que pode ocorrer no futuro para fazê-lo? E será que na prática não somos levados pelas nossas paixões e desejos de forma que a busca da felicidade como ideal acaba sendo uma busca da satisfação dos nossos instintos? Afinal, Sócrates no século V a.C. já havia nos alertado que sem conhecimento não pode haver virtude. Como ser virtuoso ao praticar o culto da felicidade se não conhecemos a nós mesmos e se não entendemos a realidade presente para antecipar o futuro?
Sob essa perspectiva, será que o filho de Jan e Els, ao se ver privado dos pais por longos anos pela frente, não se arrependerá de ter compactuado com a morte deles porque lhe era mais conveniente no momento? Será que o Estado holandês que economiza agora, cortando custos ao liberar a eutanásia, não estimulará no longo prazo um individualismo cada vez maior, o esgarçamento cada vez maior dos laços familiares e desincentivará a constituição de famílias e a consequente reprodução das pessoas? Afinal, para que ter filhos se quando eu ficar velho serei coagida a me deixar ser objeto de eutanásia para não ser estorvo para ninguém? Quem sustentará o Estado se não houver pessoas que possam trabalhar, gerar riqueza e pagar impostos?
Prezados leitores, a eutanásia pode ser útil e resolver no momento os problemas de um grande número de pessoas de maneira simples. No longo prazo, ela pode contribuir para destruir a civilização, porque ao cultivar a morte, ela acabará com o vínculo do passado com o futuro estabelecido por aqueles que praticam os valores de uma sociedade que pretende permanecer viva, notadamente o de preservar o legado deixado pelas gerações passadas para as gerações futuras. Espero que nosso Brasil, que está envelhecendo rapidamente e não achou ainda meio de dar emprego e condições dignas aos velhinhos, não adote esse expediente utilitarista. No final das contas, a eutanásia é útil para quê? Para resolver um problema financeiro imediato ou para destruir aquilo que gerações e gerações de seres humanos construíram ao longo dos séculos?