browser icon
You are using an insecure version of your web browser. Please update your browser!
Using an outdated browser makes your computer unsafe. For a safer, faster, more enjoyable user experience, please update your browser today or try a newer browser.

Morrer para quê?

Posted by on 31/07/2024

A Revolução Industrial transformou a moralidade. Ela não alterou a natureza do homem, mas deu novos poderes e oportunidades a antigos instintos que primitivamente eram úteis, mas socialmente causavam problemas. Ela enfatizou a motivação do lucro a um ponto em que parecia estimular e intensificar o egoísmo natural do homem. Os instintos não sociais tinham sido coibidos pela autoridade parental, pela instrução moral nas escolas e pela doutrinação religiosa.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Ele considera as religiões tradicionais como sendo os alicerces da moralidade dos escravos. De acordo com ele, o homem livre deve reconhecer que Deus está morto; aquilo pelo que devemos lutar não é Deus, mas um tipo mais sublime de homem. O exemplo típico de moralidade dos escravos Nietzsche encontrava no Cristianismo. Isso porque ele é pessimista ao cultivar a esperança de uma vida melhor em outro mundo, valorizando virtudes de escravo como a docilidade e a empatia.

Trecho retirado de “Wisdom of the West”, do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Se não existe Deus, então eu sou Deus. […] Se Deus existe, então toda a vontade é Dele, e fora da vontade Dele nada posso. Se não existe, então toda a vontade é minha e sou obrigado a proclamar o arbítrio. […] Não compreendo como até hoje um ateu pôde saber que Deus não existe e não se matou no ato! […] O homem foi até hoje tão infeliz e pobre porque temeu proclamar a parte essencial do seu arbítrio.

Trecho retirado do livro “Os Demônios”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), falado pelo personagem Kiríllov

    Prezados leitores, eu já apresentei aqui anteriormente personagens da literatura como o Dr. Lydgate e sua esposa Rosemond, idealizados pela escritora inglesa George Eliot. Nesta semana abordarei um personagem do romance de Fiódor Dostoiévski, Os Demônios. O nome dele é Kiríllov e suas ideias são consideradas pela critica literária como uma antecipação avant la lettre do que seria proposto pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Se o casal inglês ilumina as relações passivo-agressivas às quais muitas vezes ficamos presos, o revolucionário russo ilumina os caminhos históricos pelos quais seu país enveredou no século XX e foram vislumbrados pelo autor de Os Demônios.

    Kiríllov faz parte de um grupo de rebeldes que se reúnem em Genebra, na Suíça, e têm a ideia de destruir todas as instituições russas, incluindo sua moral e sua religião para criar uma nova sociedade. De volta à pátria-mãe, os membros do grupo seguem percursos paralelos que vez ou outra se entrecruzam. O percurso de Kiríllov é o suicídio, que ele concretiza como uma manifestação da sua liberdade. Conforme o trecho que abre este artigo, se Deus não existe, o homem não está submetido aos seus ditames e nem deve a Deus a graça da vida. Não estando limitado por nenhuma regra imposta por algum Ser Supremo, o homem deve exercer seu livre-arbítrio e a manifestação mais perfeita desta liberdade de escolher o que fazer é escolher dispor da própria vida, que é o bem que segundo os ditames da religião teria sido concedido a nós por Deus. Dessa forma, o homem se torna Deus, porque ele cria e destrói como Ele faria se existisse. Entre continuar a viver e morrer, Kiríllov escolhe dar-se um tiro mortal.

    Daí porque Kiríllov anuncia a visão de mundo que seria defendida pelo filósofo alemão Nietzsche em obras como “Assim Falou Zaratustra” (1885). Tanto o personagem de Dostoiévski quanto o personagem de Nietzsche renegam e desprezam o cristianismo. Para Kiríllov, a morte de Jesus Cristo é absurda, não tem significado nenhum. Ele sofreu imensamente por nada, pois nem foi para o paraíso e nem ressuscitou. O amor, a compaixão, a caridade mostrados pelo principal personagem do Cristianismo não serviram de nada, pois foram pretensas virtudes que acabaram não sendo recompensadas nem aqui nem em um outro mundo. Nietzsche também envereda pelo mesmo caminho de desprezar as virtudes cristãs, que para ele servem apenas para escravos, pois incentivam o pessimismo, a subserviência e a timidez, já que implicam a aceitação do sofrimento de maneira inquestionável. Em contraposição a esta moralidade dos escravos, devemos criar a moralidade dos senhores, do homem sublime, conforme mencionado no trecho que abre este artigo.

    O homem sublime nietzschiano reconhece que Deus está morto, como Kiríllov reconhece, e tal reconhecimento é uma oportunidade de criar a moralidade do übermensch, isto é, do ser independente, generoso, resiliente que supera o velho homem que sofre e tem medo das vicissitudes que a vida lhe impõe, por isso sonha com a vida além da morte. O übermensch ao contrário, segue em frente, destemido, atuando no mundo de maneira implacável, sem reticência, mesmo porque ele, pertencente ao grupo dos melhores, tem pouca simpatia pelo sofrimento da maioria dos seres humanos que não estão destinados a grandes realizações como o übermensch, tomando o lugar de Deus, está.

    Não é de surpreender que uma nova moralidade, livre das amarras da religião cristã, tenha surgido na mente de intelectuais do final do século XIX como Dostoiévski e Nietzsche. Como tentei explicar neste meu humilde espaço na semana passada, a Revolução Industrial proporcionou a melhora das condições materiais da vida em virtude do emprego da tecnologia para a produção de bens de consumo em grandes quantidades e a um preço cada vez mais acessível a um grande número de pessoas. Conforme o trecho que abre este artigo, a Revolução Industrial acabou tendo um impacto também sobre a moralidade. Dotando o homem de novos poderes e de novas possibilidades, ela tirou o foco do sofrimento e da redenção após a morte para infundir-lhe otimismo ante o que ele poderia fazer no futuro. Isso claro, incluía destruir a antiga sociedade e recriar a sociedade sobre novas bases, já que o homem toma do Deus morto o poder de vida e de morte.

    Prezados leitores, os Kiríllov e os Zaratustra da vida real no século XX fizeram a revolução na Rússia, na China, no Camboja, entre outros países. Para que esse novo homem pudesse surgir foi preciso que milhares de homens morressem e para quê? Para ressuscitar para a vida eterna depois de sofrerem na Terra a opressão de outros homens? Ou para afirmar a liberdade de ação dos übermensch que decretam a morte de Deus, como é proposto em obras como “Os Demônios” e “Assim Falou Zaratustra”? E que novo homem surgiu depois de todas essas mortes? O mesmo egoísta de antes, mas sem amarras morais que lhe atassem à religião e à família? Ou um homem sublime, que prescinde de Deus porque ele é seu próprio Deus? Cada um ache sua resposta, conforme sua ideia do que é a vida e a morte.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *