Goethe considerava que a “religião cristã é uma revolução política abortada que se tornou moral”. Há na literatura “mil páginas tão belas e úteis” quanto nas Escrituras. “Ainda assim eu considero todos os quatro evangelhos como genuínos, porque neles é evidente o esplendor refletido do poder sublime que emanava da pessoa de Cristo e de sua natureza, que era tão divina quanto o divino possa ter se manifestado na Terra … Eu tiro o chapéu para ele como a manifestação divina do mais alto princípio da moralidade. […] Ele suspeitava que o Protestantismo sofreria devido à falta de cerimônias inspiradoras, formadoras de hábitos, e ele considerava o catolicismo sábio e benéfico ao simbolizar as relações e desenvolvimentos espirituais com sacramentos que deixavam uma profunda impressão nas pessoas.
Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre as ideias do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
As expressões do divino como algo íntimo e não alienado, como residente no interior e perto do interior das pessoas e não remoto, caracterizam o panteísmo e o panenteísmo em contraste com o teísmo clássico. Tal imanência estimula o senso do homem de participação individual na vida divina, sem a necessidade de mediação por nenhuma instituição.
Trecho retirado do verbete sobre panteísmo e panenteísmo do volume 13 da edição de 1975 da Enciclopédia Britânica
Deixe o homem ser nobre,
Prestativo e bom
Porque isso é a única coisa
Que o distingue dos outros seres
Que conhecemos…
Trecho retirado “Wilhelm Meisters Wanderjahre, oder Die Entsagenden” do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), conforme citado no livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre as ideias do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
Prezados leitores, na semana passada eu humildemente conclamei os franceses que protestavam contra os resultados do primeiro turno das eleições a abandonarem o ódio e optar pelo amor, ou pelo menos por uma benevolência ou boa-vontade mútuas que os levassem a entender o ponto de vista do outro. Claro que esse apelo não foi ouvido por ninguém do outro lado do Oceano Atlântico e no segundo turno das eleições que ocorreram no último dia 7 de julho, os franceses praticaram o voto útil para mostrar seu repúdio ao Rassemblement Nacional, o partido que em 30 de junho havia chegado em primeiro e que uma semana depois acabou ficando na terceira posição. A democracia na França parece ter resvalado para o tribalismo, a luta de um grupo contra o outro, cada um com valores irreconciliáveis e cujo objetivo é destruir o inimigo. Quem perde com a polarização é o país: em não dialogando, a direita e a esquerda não conseguem pensar juntas e estabelecer denominadores comuns para a ação concreta. Prenuncia-se na França uma paralisia que pode piorar a situação do país cujas despesas públicas totalizaram 57,3% do PIB em 2023 (fonte: Trading Economics) e cuja dívida pública ficou em 117% do PIB em 2022 (fonte: Statista). A situação nos Estados Unidos não é diferente: se os espantalhos na França são Marine Le Pen, a líder da direita, ou o líder da esquerda Jean-Luc Mélenchon, na terra do Tio Sam os bichos-papões no momento são Donald Trump, considerado pelos seus detratores como mentiroso contumaz, e Joe Biden, o velho gagá, como não deixam de enfatizar os trumpistas.
Nessa era de ódios e tribalismos como cultivar o amor e o respeito pelo outro? Meu objetivo nesta semana é apresentar-lhes a receita encontrada por Johann Wolfgang von Goethe, o autor da famosa obra Fausto, a mais importante já escrita na língua alemã. A receita de Goethe foi sendo elaborada ao longo da sua vida, com base nas experiências que teve e no conhecimento que ele adquiriu. A princípio, pode-se dizer que ele rejeitava o cristianismo, por uma série de razões: sua sensualidade, seu gosto pela vida o impediam naturalmente de considerar-se um eterno pecador por ter tais características. A história de que Jesus Cristo era o filho de Deus, vindo à Terra no ventre de uma mulher virgem para redimir os pecados da humanidade pela morte na cruz parecia-lhe absurda. Para Goethe, provavelmente o que o homem Jesus quis foi livrar os judeus do jugo dos romanos, mas o resultado prático da sua tentativa de rebelião foi a criação por seus seguidores de uma igreja que ao longo do tempo se institucionalizou e arvorou-se em detentora da verdade sobre o que era o bom e o mau comportamento. Para um indivíduo que se via como parte da Natureza, que não é nem boa nem má, mas simplesmente existe e se destrói e se recria constantemente, era impossível seguir os preceitos quer do Catolicismo, quer do Protestantismo e levar a vida reprimindo seus sentimentos e seus desejos para não se sujar com a mancha do pecado e condenar-se à danação eterna.
Se a religião, tal qual estabelecida no Ocidente, não satisfazia seus anseios existenciais, a que Goethe recorreu? À arte e à ciência. Daí ele ter sido um cientista diletante, que publicou obras sobre a natureza das cores e anatomia comparativa, e ter sido um praticante da literatura que escreveu obras de ficção, autobiografias, peças de teatro e poemas. Nesse sentido, pode-se dizer que Goethe foi um panteísta, conforme a definição que abre este artigo: na qualidade de artista e portanto, dotado de aguçada sensibilidade, ele não poderia simplesmente conceber o mundo como algo meramente material, pois nele o material e o espiritual existiam intrinsicamente ligados. Deus não é uma entidade remota e abstrata como o pintava o teísmo clássico, mas algo imanente à Natureza, à forma como ela se manifestava em termos de eventos necessários, que obedeciam a leis imutáveis, mas também em termos de uma potência criadora e destrutiva que faz o homem maravilhar-se ante as surpresas e os mistérios que ele encontra no mundo exterior.
Panteísta sim, teísta não. Deus é imanente à Natureza, não é um patriarca severo que dita regras morais aos homens do alto do seu trono no céu. E no entanto, será que Goethe era contra a religião? Ele, indivíduo intelectualmente preparado, sedento de conhecimento e extremamente sensível, alimentava seu espírito pela arte e pelo contato com a Natureza, seja estudando-a como cientista seja deleitando-se em contemplá-la em suas múltiplas manifestações. No entanto, ele tinha a sabedoria de admitir que nem todas as pessoas podiam ser como ele e que à falta de arte e de ciência, a religião poderia ser uma porta para a vida espiritual e fazer do homem uma criatura diferente dos outros seres vivos, na medida em que ele tinha a capacidade de fazer o bem.
Conforme o trecho que abre este artigo, Goethe descartava a maior parte das afirmações teológicas do cristianismo sobre a divindade de Jesus Cristo, sua ressurreição dos mortos, etc. Mas ele não podia deixar de constatar que Jesus Cristo, ao pregar o amor como princípio moral básico, tinha sido um ser humano excepcional, que se elevou às mais altas esferas ao cultivar o que há de melhor no homem. Nesse sentido, a religião tinha o seu valor porque permitia que pessoas sem propensão artística ou intelectual cultivassem o espírito por meio dos sacramentos, dos rituais e dos símbolos da igreja. Nesse sentido, as missas da Igreja Católica para ele eram instrumentos mais poderosos para levar as pessoas a se conectar ao todo, ao mistério da vida do que os cultos protestantes, que ao darem muita ênfase aos sermões, à palavra, à argumentação teológica sem apelo à emoção não seriam tão inspiradores.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Em pleno século XVIII, em que o cristianismo havia sido desacreditado intelectualmente pelos Iluministas, Goethe achou um lugar para os rituais religiosos: se o hábito de ir à missa aos domingos permite ao homem ter contato com a sua melhor parte ao lembrá-lo do cerne da mensagem de Jesus Cristo, qual o problema se as pessoas letradas não podem crer em todos os dogmas da Igreja? Afinal, como o poema citado na abertura deste artigo afirma, a nobreza do homem não está em ajudar seus semelhantes e fazer o bem?
Prezados leitores, à luz das lições do maior escritor da língua alemã fica a dica para combatermos os maus sentimentos que predominam no mundo. Adquiramos o hábito de frequentar um culto religioso: por mais que não possamos aceitar muitas das proposições sobre a divindade que as igrejas oferecem, ao menos uma vez por semana cultivaremos o espírito e teremos a sensação que Goethe tinha ao olhar para as montanhas ou para o céu estrelado ou ao ler um poema ou uma música. Quem sabe com isso achemos nossa humanidade comum e sejamos mais benevolentes uns com os outros? Não custa tentar, basta que nos livremos dos nossos preconceitos antirreligiosos. Em suma, missas para quê? Para que, à falta dos talentos de um artista ou cientista, qualquer homem comum possa ter a oportunidade de concretizar sua vocação para uma vida em sociedade, em que um ajuda o outro em prol do bem de todos.