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Amor para quê?

Posted by on 04/07/2024

Quando a igreja se torna uma instituição que força a crença ou o culto: quando ela presume ser ela a única com o direito de interpretar as Escrituras e de definir a moralidade; quando ela forma um clero que alega ter a exclusividade de aproximação com Deus e com a graça divina; quando ela torna seu culto um ritual mágico detentor de poderes miraculosos; quando ela se torna uma arma do governo e um agente de tirania intelectual; quando ela procura dominar o estado e usar os líderes seculares como instrumentos da ambição eclesiástica – então a mente livre levantar-se-á contra tal igreja, procurando fora dela aquela “pura religião da razão” que é a busca da vida moral.

Paráfrase de um trecho do livro “Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft”, do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), citado no livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

 

Quando eu odeio eu retiro algo de mim mesmo; quando eu amo eu me torno mais rico por aquilo que amo. O perdão é o recebimento de um bem que foi perdido. A misantropia é um suicídio postergado.

A ética de Jesus Cristo, conforme definida por Johann Christian Friedrich Schiller (1759-1805), poeta autor da Ode à Alegria cantada na parte final da Nona Sinfonia de Beethoven, citado no livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

 

As ruas de Paris transformaram-se em palco de uma guerra na noite de domingo, quando dezenas de milhares de desordeiros de esquerda foram às ruas para mostrar sua oposição ferrenha à vitória histórica nas eleições legislativas do partido de direita francês Rassemblement National. Os desordeiros quebraram vitrines de lojas, vandalizaram monumentos e acenderam fogueiras em praças públicas depois que os resultados da eleição revelaram que o partido, liderado pela nacionalista Marine Le Pen, teve 33% dos votos no primeiro turno decisivo das eleições legislativas na França.

Trecho retirado do jornal New York Post sobre as eleições realizadas na França em 30 de junho, convocada pelo presidente Émmanuel Macron para a formação de um novo governo

    Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei o conceito de imperativo categórico do filósofo Immanuel Kant e tentei aplicá-lo às ações dos houthis no Mar Vermelho à luz das críticas que foram feitas a ele por Bertrand Russell (1872-1970). Nesta semana, explorarei mais a ética kantiana para contrapô-la a uma visão menos racional da religião com o objetivo de analisar as manifestações de ódio ocorridas em Paris no dia 30 de junho e propor uma saída para a ameaça que elas revelam.

    Para Kant, a única religião defensável era uma religião da razão, isto é, uma religião que colocasse no centro das preocupações humanas a obediência a um senso do dever, o qual era uma manifestação da existência do divino no homem, portanto inexplicável e eterno: o ser humano nasce com a centelha de uma consciência moral que não se apaga jamais e o papel da religião é o de fazer com que essa centelha se transforme em uma brilhante fogueira que leve o homem a viver uma vida moral, isto é, uma vida dedicada à concretização do imperativo categórico de fazer a coisa certa em qualquer momento ou circunstância, independentemente das preferências pessoais.

    Daí por que o filósofo de Konisberg, cidade que ficava na antiga Prússia e hoje é Kaliningrado na Rússia, rejeitava a religião, conforme ela estava institucionalizada no século XVIII. Cultivando a razão e o livre arbítrio como fontes da ação ética, Kant insurgia-se contra tudo o que havia de irracional e arbitrário nas igrejas constituídas na Europa, conforme o trecho que abre este artigo. Assim, ele criticava o uso da religião, dentre outras coisas: como forma de controlar o pensamento das pessoas e de sufocar o livre exercício pelo indivíduo das suas faculdades mentais; como forma de manter  as elites no poder pela supressão das críticas ao sistema econômico e político; para impor a visão de que os membros da igreja eram os únicos com acesso à verdade, por conta de suas relações privilegiadas com Deus, estabelecidas por meio da instituição; como instrumento de culto de mitos e de prática de rituais que contrariavam a realidade dos fatos e os ensinamentos da ciência e que só serviam para dar uma aura de mistério a algo que era simplesmente absurdo.

    Assim, a igreja enquanto instituição prestava um desserviço ao exercício da “pura religião da razão” proposta por Kant, por ser um mero exercício de poder daqueles que se arvoravam em defensores do bem contra o mal e de divulgadores da verdade revelada, mas que no mais das vezes apenas defendiam seus privilégios e, em fazendo isso, praticavam atos imorais e propagavam mentiras. O que fazer em tal situação? Guiar-se pelos ditames da nossa consciência moral, manifestação divina?

    Ora, o exemplo das ações dos houthis, que querem diminuir a injustiça infligida aos palestinos piorando a vida de bilhões de pessoas ao redor do mundo por seus ataques a navios cargueiros, mostra que o senso de dever de cada indivíduo não é um guia infalível para fazer o que é certo. Navegando pelos meandros da razão, o ser humano pode acabar apenas dando vazão a paixões por meio da racionalização das suas motivações. Será que os houthis defenderiam grupos não muçulmanos da opressão da mesma maneira que estão defendendo os palestinos? Ou será que no final das contas, fazer a coisa certa para os houthis é simplesmente ajudar grupos amigos, membros da mesma tribo religiosa?

    Talvez a saída seja adotar uma concepção menos racional das obrigações éticas do homem. É o que fez o poeta alemão Schiller em uma série de cartas reunidas sob o título de “Philosophische Briefe”. Esqueçamos a velha teologia, que não pode ser mais aceita à luz dos avanços do conhecimento humano. Fiquemos com a mensagem básica de Jesus Cristo, o homem em nome de quem todas as igrejas ocidentais foram criadas, conforme citada no trecho que abre este artigo: amemos uns aos outros. É melhor amar do que odiar, porque o amor nos enriquece e o ódio nos empobrece espiritualmente, nos torna amargos, rancorosos e nos faz nos sentirmos injustiçados por aqueles que são o objeto do nosso sentimento.

    Nos tempos atuais, de polarizações políticas, a máxima de Schiller talvez nos livre das armadilhas do exercício da razão para o estabelecimento de obrigações éticas. Conforme o trecho que abre este artigo, no dia 30 de junho, após a divulgação dos resultados das eleições legislativas na França, nas quais o partido de direita de Marine Le Pen obteve o primeiro lugar, houve manifestações de protesto reunindo milhares de pessoas de esquerda. Todas elas convictas de estarem fazendo o que é certo, de estarem lutando contra o racismo, contra a xenofobia, contra o fascismo e a favor da democracia e da justiça a favor dos oprimidos. Será que o debate entre direita e esquerda renderá algum fruto? Considerando que cada lado do espectro político tem uma definição própria do que seja racismo, xenofobia, fascismo, democracia e justiça, baseada em seus valores fundamentais, será que o exercício da razão será de alguma utilidade? Como fazer uso da razão para chegar à verdade se não é possível que as partes beligerantes cheguem a um acordo sobre as premissas básicas da discussão?

    Daí que a saída pode estar em cultivar o amor e não o ódio, como Jesus Cristo fez, aos olhos de Schiller. Se olharmos o outro de maneira benevolente, talvez tornemo-nos mais dispostos a chegar a um meio-termo sobre as definições de conceitos que viabilizam uma discussão produtiva e a obtenção de conclusões e de consensos que permitam à sociedade executar soluções práticas para os problemas que são de todos. Se continuarmos no Ocidente a cultivar o ódio, a estigmatizar o objeto do nosso ódio e a colocá-lo em categorias éticas negativas que nos permitem continuar a odiá-lo sob o manto da vitimização e da superioridade moral, o próximo passo é a violência tornar-se institucionalizada, como parece ser o caso na França, um país desenvolvido que está a ponto de explodir.

    Prezados leitores, amemos uns aos outros: sem amor não há pensamento equilibrado, não há discussão produtiva e não há democracia que aguente os ataques mútuos. A hora é agora, pois se demorarmos muito perderemos o bonde e chafurdaremos na guerra de todos os injustiçados contra todos os injustiçados.

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