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Moral para quê?

Posted by on 26/06/2024

Está claro que todas as concepções morais têm origem de maneira completamente a priori na razão. […] Essa consciência moral normalmente entra em conflito com nossos desejos sensoriais, mas reconhecemos que ela é um elemento mais superior em nós do que a busca do prazer. Não é o produto da experiência, é parte da nossa estrutura psicológica interna, como as categorias; é um tribunal interno presente em cada pessoa, em cada raça. E é um absoluto; ela nos comanda de maneira incondicional, sem exceção ou desculpa, a fazer a coisa certa por ela mesma, como um fim em si mesma, não como um meio de obter a felicidade ou a recompensa ou algum outro bem. Seu imperativo é categórico.

Trecho retirado do livro “Rosseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a ideia da moral como um imperativo categórico proposta pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804)

O princípio supremo da ética é assim encontrado no seguinte imperativo categórico: sempre aja de maneira que os princípios que direcionam sua vontade possam se tornar a base de uma lei universal. Esse pronunciamento austero na verdade é somente uma maneira de dizer que devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que fizessem para nós. É um princípio que nega a justiça do pedido especial.

Trecho retirado do livro  “The Wisdom of the West” do filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

Tomar atitudes para ajudar os oprimidos […] é o verdadeiro teste da moralidade […] e quem quer que não tome atitudes para acabar com o crime de genocídio … perdeu sua humanidade. Os valores […] morais […] não mudam de acordo com a raça e a religião da pessoa […] Se outro grupo de seres humanos ficassem submetidos à mesma injustiça a que os palestinos estão sujeitos, nós tomaríamos atitudes para ajudá-los, independentemente da sua religião ou raça. […] o povo do Iêmen está comprometido em […] conseguir uma paz justa que garanta a dignidade e a segurança de todos os países e povos

Tweet do líder dos hutis, Mohammed Al-Bukhaiti, sobre o bloqueio a que os hutis estão submetendo navios comerciais no mar Vermelho, como maneira de pressionar Israel a prestar ajuda humanitária aos palestinos, conforme citado no artigo “Washington Faces Defeat in Red Sea Donnybrook” publicado por Mike Whitney em 22 de junho

    Prezados leitores, na semana passada falei das relações passivo-agressivas de um casal fictício, o Dr. Lydgate e Rosamond, personagens do livro Middlemarch. Nesta semana, falarei dos hutis, um grupo político religioso que fundou no noroeste do Iêmen um movimento, denominado Ansar Allah (isto é, os partidários de Deus), inspirado pelo islamismo xiita. Não descerei aqui às minúcias do que significa ser xiita, apenas falarei das ações dos hutis no mar Vermelho e de como elas podem – ou não – ser corretas à luz da noção de imperativo moral categórico do filósofo Immanuel Kant.

    Após o início das hostilidades entre Israel e o Hamas em 7 de outubro de 2023 e o bombardeio a que o exército israelense submeteu Gaza, os hutis tomaram uma decisão que está tendo sérias repercussões na economia mundial. Para pressionar Israel a parar com o a matança dos palestinos, os hutis têm atacado, com mísseis, drones e barcos com bombas,  navios comerciais que passam pelo mar Vermelho e que carregam a bandeira de algum país que esteja apoiando materialmente o esforço militar de Israel, principalmente dos Estados Unidos, do Reino Unido e claro, de Israel. O resultado desses ataques ininterruptos é que o mar Vermelho, que normalmente responde por 10 a 15% do comércio marítimo internacional, tornou-se uma via extremamente perigosa e custosa. De acordo com informações trazidas no artigo de Mike Whitney, o transporte de containers por lá diminuiu 90% desde dezembro de 2023 e os prêmios de seguro aumentaram de 0,7% a 1% do valor total dos navios que usam a rota do mar Vermelho. Como consequência, outras vias estão sendo utilizadas, particularmente aquelas de circum-navegação da África, o que aumenta de uma a duas semanas o tempo da viagem e em aproximadamente um milhão de dólares o custo do combustível.

    Os hutis dizem que só vão parar de lançar seus drones e mísseis contra os navios  quando os israelenses permitirem a entrada de ajuda humanitária em Gaza. A resolução deles parece ser férrea, considerando que os Estados Unidos estão realizando ataques aéreos a eles no Iêmen para tentar fazê-los parar e portanto, estão causando mais destruição em um país que desde 2015 enfrenta uma guerra civil. Se levarmos em conta que os hutis não estão auferindo nenhuma vantagem no momento e até agora são os únicos do mundo árabe-muçulmano que estão fazendo algo concreto em favor dos palestinos, a pergunta que se coloca é: qual a moralidade dos ataques dos hutis? Para tentar responder a essa pergunta recorro aos ensinamentos de Kant.

    O filósofo nascido em Konisgberg, atual Kaliningrado, tinha uma concepção peculiar da ética, conforme o trecho de Durant citado na abertura deste artigo. Kant não considerava os princípios éticos como derivados da experiência individual ou de um povo em uma sociedade específica, ou como comandos ditados por Deus e, portanto, externos ao homem. Eles eram um imperativo categórico. Imperativo porque tinham caráter universal e absoluto, portanto válidos em quaisquer circunstâncias de espaço e tempo. E categórico porque tinham a natureza de categoria a priori, uma forma de pensamento que era parte da estrutura inerente da mente humana. Reunindo esses dois atributos, os princípios éticos se impunham como uma vontade do homem como ser racional de fazer o que era certo, de cumprir seu dever, independentemente do que seus desejos o inclinassem a fazer e até como uma maneira de vencer tais desejos, pela pura força da decisão consciente de agir eticamente.

    Daí Bertrand Russel definir, no trecho que abre este artigo, a máxima moral kantiana como a de fazer aos outros somente aquilo que queremos que façam em nós. Em termos práticos, isso significa que caso vejamos nosso vizinho em dificuldades e queiramos ajudá-lo, o imperativo categórico determina que isso não é tão louvável quanto praticar a caridade com alguém que é detestável, porque dessa maneira a vontade autônoma da consciência humana de agir eticamente sempre se sobrepõe à inclinação subjetiva de ajudar uma pessoa querida.

    Sob essa perspectiva, as palavras do líder dos hutis citadas acima, de que a ajuda a um povo oprimido como o palestino é uma questão de justiça independente de qualquer religião ou raça ecoam o imperativo categórico da ética de Kant. Atacar navios de quem quer que dê apoio para Israel continuar seu bombardeio de Gaza é uma obrigação moral imposta pelo senso do dever de fazer a coisa certa, que é a de, nessa circunstância específica, ajudar a minorar o sofrimento de um povo que está passando fome e sede, está morrendo às dezenas diariamente e está acometido por doenças.   Os hutis estão convictos da correção das suas ações pois elas não visam atender um interesse deles, mas unicamente o interesse dos palestinos. Pelo contrário, os hutis estão realizando esse bloqueio naval no mar Vermelho sob o risco constante de represálias militares dos Estados Unidos e de seus aliados.

    E no entanto, uma dúvida surge sobre esse senso do dever como vontade de agir corretamente. Conforme explica Bertrand Russell em “Wisdom of the West”, se o que importa para determinar se uma ação é ética ou não é a intenção do agente de seguir um preceito moral, o que fazer a respeito das consequências nefastas do ato moral? Se os hutis consideram estar cumprindo seu dever, imposto a eles por essa consciência universal, como lidar com os prejuízos econômicos causados a toda a população do mundo? Afinal, o aumento do custo do transporte marítimo de containers acabará tendo repercussões nos preços dos produtos, o que afetará não só os atores diretamente envolvidos no apoio a Israel, mas mesmo as pessoas de países que condenam a matança de civis palestinos.

    Prezados leitores, à luz das lições kantianas sobre ética e sua aplicação prática às ações dos hutis no mar Vermelho em favor dos palestinos, fica a pergunta: para que serve a moral? Para dar vazão à nossa consciência interna, mesmo que isso tenha consequências negativas? Se a moral é produto da vontade autônoma do indivíduo, como ela pode ser combinada com nossas obrigações em relação aos outros, ditadas pelos costumes e regras locais? Se para salvar os palestinos é preciso causar inflação e tornar os pobres mais pobres em todo o mundo, a concretização do imperativo categórico não acaba tendo resultados questionáveis caso ignoremos seus desdobramentos? E como diria Sócrates, outro grande pensador ético, a ignorância é o maior pecado. Esperemos que a comunidade internacional encontre outras maneiras de ajudar os palestinos que não sejam o voluntarismo kamikaze dos “partidários de Deus”.

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