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Hipocrisia para quê?

Posted by on 12/06/2024

A trajetória de Bulstrode até aquele momento tinha, ele pensava, sido sancionada por ocorrências providenciais notáveis, parecendo apontar para ele o papel de agente da concretização do melhor uso de um grande patrimônio e evitando que este fosse pervertido. A morte e outras disposições extraordinárias, tais como a confiança das mulheres, haviam acontecido e Bulstrode teria feito suas as palavras de Cromwell – ‘Você chama esses acontecimentos de vazios? Que o Senhor tenha pena de você! Os acontecimentos eram comparativamente pequenos, mas a condição essencial estava lá – a saber, que eles favoreciam seus próprios fins. Era fácil para ele estabelecer o que ele devia aos outros indagando quais eram as intenções de Deus com relação a si próprio.

Trecho do livro Middlemarch da escritora George Eliot, pseudônimo de Mary Ann Evans (1819-1880)

É impossível, a esta distância, retratá-lo de maneira objetiva, pois desde sua ascensão até hoje os historiadores o descreveram como um hipócrita ambicioso ou um santo-estadista. Uma personalidade tão ambivalente provavelmente encerra em si – às vezes harmoniza – em seu caráter as qualidades opostas que geram tais avaliações contraditórias. Essa pode ser a chave para entender Cromwell.

Trecho retirado do livro “The Age of Reason Begins”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

“Eu desejo que todas as pessoas de boa fé possam imputar a glória disto a Deus, que é quem deve ser elogiado por essa misericórdia”. Ele esperava que “tal amargura impedirá o derramamento de sangue, pela bondade de Deus.”

Trecho retirado do livro “The Age of Louis XIV”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando a fala de Oliver Cromwell (1599-1658), Lorde Protetor da Inglaterra entre 1653 e 1658, quando da sua campanha de conquista da Irlanda, na qual ele cercou a cidade de Drogheda e foi responsável pela morte de 2.300 pessoas, incluindo civis e padres

    Prezados leitores, eis-me aqui de volta, depois de várias semanas de férias. Trago em minha memória imagens de lugares que visitei e reflexões sobre livros que li. Nesta semana, quero compartilhar com vocês minhas impressões sobre Middlemarch, a obra-prima da escritora inglesa George Eliot, que não foi consagrada por Hollywood como Jane Austen foi, talvez pelo fato de seus livros não serem facilmente convertidos em um script de filme. Meu foco será em um único personagem, o Sr. Bulstrode, que a escritora cria como um paradigma do puritano hipócrita, que adora pregar a virtude, acha defeitos morais em todos a seu redor, mas tem telhado de vidro. O objetivo será traçar um paralelo com Oliver Cromwell, paralelo aliás estabelecido pela própria autora.

    O Sr. Bulstrode é um homem rico e respeitável da cidade de Middlemarch, no interior da Inglaterra. Ele é rico porque herdou o patrimônio de sua primeira esposa, de quem ficou viúvo, e o multiplicou pelo seu tino comercial, e respeitável porque tem um papel de liderança na comunidade, que ele exerce indicando pessoas para cargos religiosos e construindo um hospital para abrigar as vítimas de doenças infecciosas. Ele se opõe à escolha do Sr. Fatherstone como pastor para uma igreja porque ele joga cartas à noite, o que é um hábito condenável de acordo com a religião, e ele deixa de emprestar dinheiro a um médico que lhe pede ajuda para pagar suas dívidas dando-lhe uma lição sobre como ele deve viver de maneira frugal. Enfim, o Sr. Bulstrode aparece ao longo da história como o paladino da observância de rígidos padrões morais. E no entanto…

    A visita inesperada de um antigo amigo que lhe pede dinheiro revela atos e omissões da vida pretérita do vetusto “dissidente”, como eram chamados aqueles de confissões religiosas outras que o catolicismo e o anglicanismo. A primeira esposa do Sr. Bulstrode era herdeira de um negócio no qual ele começara a trabalhar como aprendiz. Ela tinha uma filha de um casamento anterior, que fugira de casa para casar-se com um ator. Bulstrode promete à mulher que iria investigar o paradeiro da moça e realmente o faz. Ao encontrá-la, ele não dá à esposa a boa-nova e a pobre coitada morre sem saber que a filha estava viva. É nas pirotecnias mentais que Bulstrode faz para justificar seus atos para si mesmo que George Eliot revela seu gênio para retratar um típico fanático religioso hipócrita.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Bulstrode a morte da mulher, a confiança que ela depositava nele, o fato de a filha nunca ter aparecido para reivindicar nada tudo isso eram sinais da providência divina. Se a esposa morreu e a filha não deu as caras é porque Deus quis que o dinheiro ficasse com o marido viúvo, para que este o empregasse de maneira produtiva e não para que fosse gasto por pessoas perdulárias que tinham uma vida desregrada, como se pode esperar de atores. O fato de Bulstrode ter tomado a decisão de não dizer à mãe que sua filha estava viva não é, aos olhos do seu raciocínio interesseiro, uma falha moral. A morte da esposa e o desinteresse da filha em procurar a família eram intervenções divinas que corroboravam a atitude de Bulstrode e portanto, a tornavam benigna aos olhos do Senhor.

    Na prática, Bulstrode estabelece para si um código moral maquiavélico, em que os fins justificam os meios, isto é, o fim de realizar a obra divina na terra justificam a mentira, a crueldade com a própria mulher, que morreu com a mágoa de não ter podido reencontrar a filha. Nesse sentido, ele usa sua razão não para controlar suas paixões, mas para dar-lhes um verniz ético que lhe permite dar plena vazão a elas, motivando-o a perseguir seus desígnios egoístas, que ele confunde com os desígnios divinos para ter uma consciência tranquila. Em suma, qualquer coisa que Bulstrode faça será sempre boa do ponto de vista moral, porque ele sempre encontrará uma razão para vê-la dessa forma, já que a busca pelo dinheiro e pelo poder sobre as pessoas é o que o move, acima de tudo.

    Não admira que George Eliot cite as palavras de Oliver Cromwell para ilustrar o pensamento casuístico de Bulstrode que a cada manifestação do seu ego vê a intervenção divina no arranjar dos acontecimentos para favorecer os fins por ele perseguidos e justificar seus atos. Cromwell, que ascendeu ao poder na Inglaterra depois da execução do rei Charles I em 1649, é um personagem polêmico da história da Inglaterra que muitos amam e outros odeiam. Essa ambivalência de julgamento, de acordo com a explicação de Will e Ariel Durant citada na abertura deste artigo, é fruto das características contraditórias do homem. Um exemplo de uma de suas ações servirá de ilustração.

    No chamado massacre de Drogheda, que ocorreu depois do cerco à cidade irlandesa em setembro de 1649, Cromwell, que liderava as tropas, ordenou a execução de prisioneiros e o incêndio da Igreja de São Pedro, onde os soldados que defendiam a monarquia se refugiaram. Conforme as palavras dele citadas em “The Age of Louis XIV”, a mão de Deus esteve presente nesses acontecimentos: o fato de soldados terem sido queimados vivos, de outros que haviam se rendido esperando clemência terem sido executados não eram atos malignos. Eles eram manifestação da clemência de Deus pois a repressão brutal dos irlandeses rebeldes permitiu que a revolta fosse debelada, impedindo assim que mais sangue fosse derramado.

    Daí a ambiguidade de um personagem como Cromwell, que George Eliot exemplifica na figura de Bulstrode inserido no microcosmo que ela cria inspirada em seu Warwickshire natal. O fato de ele ter a convicção de ser inspirado por Deus em seus atos dava-lhe a determinação para perseguir seus objetivos de maneira implacável? Não seria isso uma qualidade em um líder que estava enfrentando a desordem causada pela derrubada do Velho Regime da monarquia absolutista representada por Charles Stuart, o rei deposto e executado? Ou as matanças e crueldades praticadas sob as ordens de Cromwell, tudo em nome de Deus, seriam os atos de um hipócrita que sabia dar vazão a sua ambição pelo poder convencendo as pessoas de que ele estava fazendo a coisa certa do ponto de vista moral porque o Senhor havia intervindo diretamente nos acontecimentos? Será que a harmonização de que fala Durant significa que a hipocrisia de Cromwell, isto é, sua facilidade em costurar um manto sagrado para seus atos, permitiu-lhe uma firmeza de propósitos que deixou um legado digno de um estadista?

    Questões filosóficas cuja resposta depende dos valores de cada um. No seu esforço de retratar um hipócrita em ação, George Eliot, que era profundamente agnóstica em matéria religiosa, dá a seu personagem o final de um ser sobre o qual ela passa um julgamento moral. Bulstrode acaba tendo que sair de Middlemarch, diante da repercussão das revelações sobre sua vida pregressa que caem na boca do povo. Ele vai morar em outra cidade com sua fiel esposa que não o abandona por amor, mas a quem ele não tem a humildade de pedir perdão, porque seu orgulho e sua autoimagem são mais importantes que tudo. De qualquer forma, por maior que seja sua falta de caráter, para além do verniz do proselitismo religioso, ele deixa um legado: um hospital que terá um impacto positivo na comunidade, a despeito da origem ilícita dos recursos que o financiaram. Com certeza se pode dizer o mesmo do Lorde Protetor da Inglaterra: não há dúvida de que ele foi o carrasco da Irlanda, pois sua guerra de conquista causou a morte de 616.000 de um total de 1.466.000 pessoas. Mas o seu governo, cheio de excessos puritanos, deu um golpe fatal no direito divino dos reis e lançou as bases para a futura tomada definitiva do poder pelo Parlamento.

    Inspirados realmente por Deus ou não, os hipócritas Bulstrode e Cromwell, na sua estranha combinação de elementos contraditórios, deixaram sua marca no mundo, fazendo assim com que o vício prestasse tributo à virtude. Prezados leitores, no final das contas, a hipocrisia pode ter uma função no grande esquema das coisas, mas não deixem jamais de desconfiar de quem age em nome de Deus.

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