Ele deixou de lado qualquer ideia de democracia. Ele sentia que seu povo não estava preparado para fazer julgamentos; com raras exceções, eles adotariam qualquer opinião ditada a eles por seus senhores ou padres. Mesmo uma monarquia constitucional não lhe parecia auspiciosa; um parlamento como o da Inglaterra seria uma sociedade fechada de proprietários de terras e bispos que desafiariam qualquer mudança nas estruturas básicas. José partia do pressuposto de que somente uma monarquia absoluta poderia quebrar a inércia dos costumes e dos grilhões dos dogmas, protegendo o fraco simplório do forte esperto.
Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o imperador da Áustria e do Sacro Império Romano Germânico José II (1741-1790)
O principal risco vem dos grupos de pressão. É fois gras (fígado gordo) virar cesta básica. É expandir demais grupos que têm tratamentos favorecidos. O Brasil tem essa característica de que grupos de pressão são muito poderosos. Já foi uma luta na Emenda Constitucional e, agora, vai ser uma luta na legislação complementar. Eu acho que esse é o perigo maior.
Trecho da entrevista dada ao jornal O Estado de Sâo Paulo em 28 de abril de 2024 pelo Doutor em Economia e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, Samuel Pessoa, sobre a regulamentação da reforma tributária aprovada no Congresso Nacional em 2023
A conclusão que eu quero tirar de tudo isso, ela é triste: é que o Sr. Macron não é o presidente da República Francesa, ele ocupa o posto, mas ele não está lá. O presidente da República Francesa, o Chefe de Estado é normalmente alguém que defende acima de tudo os interesses nacionais. […] Então o Sr. Macron não obedece ao povo francês, ele é o empregado de uma oligarquia que quer privatizar nosso sistema de previdência social.
Trecho de uma entrevista à rádio Courtoisie em 15 de setembro de 2022 de François Asselineau, presidente e fundador da União Popular Republicana na França, sobre o aumento da idade mínima de aposentadoria, introduzida pelo Presidente da França, Emmanuel Macron
Prezados leitores, já tratei neste meu humilde espaço de populistas, como Donald Trump, de autocratas como Putin e nesta semana tratarei de uma figura sobre a qual nós nos bancos escolares aprendemos sob o nome de déspota esclarecido, que era o ideal de governante dos filósofos iluministas do século XVIII. O governante que, educado e imbuído dos valores corretos de tolerância religiosa, de combate à superstição e ao dogma, seria o melhor instrumento da reforma para o bem do progresso. Especificamente tratarei do imperador da Áustria, José II, que vem a ser tio-avô da nossa imperatriz Leopoldina. José, filho da imperatriz Maria Theresa (1717-1780) e que governou ao lado da mãe de 1765 até a morte dela e depois sozinho. O objetivo de analisar a trajetória do déspota esclarecido austríaco é o de lançar luz sobre as atribulações que vive a democracia nos países em que e
la vige, como o Brasil e a França.
Assim como um de seus ídolos intelectuais, Voltaire (1694-1778), José II não acreditava em democracia, porque a maioria da população estava por demais impregnada pela religião para poder pensar racionalmente. Conforme o trecho que abre este artigo, José, como bom homem ilustrado, considerava que se fosse dado às massas o direito de escolher seus governantes, ela simplesmente iria fazer o que o potentado plantão mandasse, fosse o padre do vilarejo ou o senhor do castelo. Nem uma monarquia constitucional, à la anglaise, para ele era a solução, pois os membros do parlamento seriam os representantes dos grupos mais fortes politica e economicamente, os quais defenderiam seus interesses entrincheirados e lutariam contra qualquer tentativa de mudança que pudesse ser proposta para votação.
A solução era então esta figura do déspota, que faria uso dos poderes absolutos desfrutados tradicionalmente pela monarquia para impor à força as mudanças de que o país necessitava para modernizar-se, isto é, produzir riqueza pelo aumento de oportunidades de trabalho e para melhorar as condições de vida da população. E assim o imperador austríaco, que era também rei da Hungria tentou fazer, por meio de uma série de medidas. Elas incluíram a abolição da servidão, a abolição da pena de morte, a instituição de um novo código de processo civil, o estabelecimento do direito dos antigos servos de mudarem de ocupação e de residência, a redução ou a abolição de pedágios internos para estimular a livre circulação de mercadorias, o aumento da tributação da propriedade rural, de forma que o camponês ficasse com uma fatia maior daquilo que produzia e da sua renda, aumentando tal parcela de 27% para 75%, ao invés de entregá-la em sua maior parte à Igreja, ao Estado e aos senhores de terra, como ocorria antes. José também desmantelou muitos monastérios e conventos, confiscando o patrimônio dessas instituições e alocando-o para a construção de hospitais, escolas e instituições de caridade.
Ao penalizar a Igreja com confisco de propriedade e os nobres com aumento da tributação, estes poderosos grupos se revoltaram contra essas reformas e ao final, em 30 de janeiro de 1790 José II revogou todas elas, à exceção da abolição da servidão. Frustrado por seus fracassos, exaurido fisicamente pelos seus esforços, o imperador morreu em 10 de fevereiro daquele ano, não antes de preparar seu próprio epitáfio que dizia: “Aqui jaz José, que não obteve sucesso em nada”. No entanto, as sementes que ele lançara frutificaram em 1848, quando as reformas desse déspota esclarecido foram todas resgatadas e concretizadas.
O ponto a ser ilustrado por esse resumo das políticas de José II é o quão é difícil colocar ideais de boas políticas em prática quando é necessário enfrentar os interesses das elites dominantes, que veem seus privilégios serem ameaçados. Isso é válido tanto no século XVIII quanto no século XXI, em que temos sistemas democráticos representativos em que os parlamentos acabam sendo depositários desses interesses. No Brasil, o governo federal conseguiu aprovar uma reforma tributária que instituiu o Imposto sobre Bens e Serviços para substituir o ICMS e o ISS nos níveis estadual e federal, respectivamente, e a Contribuição sobre Bens e Serviços, que substitui os antigos IPI, COFINS e PIS no nível federal. A questão agora é a regulamentação da nova lei tributária, que estabelecerá, por exemplo, que setores gozarão de alíquotas reduzidas ou zero. É aí que mora o perigo, conforme o trecho que abre este artigo. Segundo Samuel Pessoa, a reforma, que deu um passo importante rumo a uma maior racionalização do regime tributário no Brasil, pode ser deturpada se os grupos de pressão se mobilizarem e conseguirem isenções tributárias. Considerando o quão fortes eles são no Congresso o economista preocupa-se com o que a regulamentação fará com o espírito da lei.
A força das oligarquias para moldar políticas a despeito da democracia e até no próprio seio dela também é motivo de reflexão por parte de François Asselineau em sua entrevista a uma rádio francesa alternativa. Nela ele fala a respeito da reforma do regime de previdência efetuada pelo Presidente da França, Emmanuel Macron, que aumentou a idade mínima da aposentadoria dos franceses de 65 para 67 anos para que possam receber o benefício integral. Para o presidente e fundador da União Popular Republicana, considerando a dificuldade que os maiores de 50 anos têm para obter emprego, especialmente no contexto do pouco dinamismo econômico que vive o país, e que aqueles que começam a trabalhar cedo ou exercem trabalhos manuais se exaurem fisicamente muito antes dos 67 anos, tal reforma é injusta, pois penaliza os mais vulneráveis.
Asselineau sustenta que o objetivo dessa reforma é o de minar o sistema de previdência público, tornando-o cada vez mais inacessível, e estimular o sistema de previdência privado. Isso está em linha com a atuação de Macron, ao longo do seu mandato presidencial de defesa dos interesses da oligarquia em detrimento dos franceses. Asselineau vê graves problemas na democracia francesa: mal informada pela mídia e manipulada por pesquisas de opinião parciais, a população francesa acaba fazendo más escolhas por falta de conhecimento e elege figuras como Macron que jamais defendeu os interesses do povo francês como um todo, mas somente do pequeno grupo que fez dele um candidato viável, promovendo-o nos meios de comunicação.
Prezados leitores, como sanar os defeitos da democracia no século XXI, que já haviam sido apontados pelos filósofos do século XVIII e por um déspota esclarecido como José II? Como fazer com que o povo seja mais bem informado para escolher representantes que não serão simplesmente testas de ferro de grupos de interesse? Será que o povo quer ser informado? Ou ele quer continuar alineado da política, seja acreditando cinicamente que todos os políticos são corruptos e que por isso não vale a pena preocupar-se com isso, seja acreditando que os candidatos são autênticos e podem ser julgados pelo que falam porque fazem o que pregam? Quais a consequências de longo prazo dessa indiferença ou dessa inocência? No final das contas, se a democracia continuar refém dos interesses oligárquicos isso não abrirá caminho para um déspota que canalizará as frustrações da maioria? Será que ele será esclarecido o suficiente para refundar a democracia e a prosperidade ou será tirânico o suficiente para incitar a violência e o caos? Aguardemos.