Mas eram os nobres que eram decadentes, era Luís XV que era corrupto; e era a aristocracia e a monarquia que caíram na Revolução. As massas – à exceção das turbas rurais e urbanas – mantinham as virtudes que salvam uma nação, e Greuze as retratava.
Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) a respeito do pintor francês Jean-Baptiste Greuze (1725-1805)
Só entramos nessas áreas com autorização. Temos 200 líderes comunitários que nos ajudam. Mesmo assim, só recebemos autorização para fazer manutenção, ou seja: quando a comunidade é afetada. Nunca em caso de perda de energia (o chamado “gato”) ou para fazer um corte por falta de pagamento – lamenta Salas. […] Sem dar detalhes, a Light diz que “tem restrições em boa parte da sua área de concessão”. Acrescenta que “a situação se agrava com a rivalidade em regiões violentas e dominadas por poderes paralelos que, quando estão em conflito, não podem ser atendidas pela concessionária para preservar a vida de colaboradores e moradores.”
Trecho retirado do artigo “Sinal da Violência – Concessionárias são impedidas de prestar serviço em áreas dominadas por criminosos”
Prezados leitores, na semana passada abordei a questão da violência atávica no Brasil, enfocando o cangaço do final do século 19 e do início do século XX no Nordeste e o Rio de Janeiro das milícias e do narcotráfico. Nesta semana, tratarei de outra manifestação da violência carioca que tem desdobramentos em vários níveis. Falo das dificuldades enfrentadas por operadoras de telefonia e de internet e por concessionárias de serviços públicos de operar em zonas conflagradas na Cidade Maravilhosa.
Conforme o trecho que abre este artigo, para que a Light, a concessionária de energia elétrica que atua no Rio de Janeiro consiga entrar em uma comunidade, ela precisa pedir autorização dos líderes comunitários. Mas tal autorização tem limites. Os técnicos não podem entrar para detectar ligações clandestinas ou para cortar a luz por falta de pagamento. É preciso sempre que os moradores se beneficiem, mesmo que eles estejam lesando as empresas que prestam serviços de infraestrutura. As consequências para aqueles que não respeitam essas condicionantes são duras.
O artigo relata que num caso um morador, ao perceber que o técnico estava conduzindo operação de rotina para detectar os gatos, saiu de sua casa e o ameaçou com uma arma de fogo para impedir que a gambiarra fosse desfeita. Noutro caso, depois de um temporal em que vários municípios ficaram sem luz, alguns veículos da Light foram sequestrados para fazer reparos dentro da comunidade sequestrante. Quanto aos municípios ao redor, azar o deles. No Natal, quando 25 mil pessoas ficaram sem energia em Maricá durante a noite, traficantes só deixaram a ENEL entrar para fazer reparos na rede de transmissão às 6 horas do dia 25. Na Praça Seca, na Cidade do Rio de Janeiro, a internet é cortada em certas ruas para que as pessoas sejam coagidas a contratar a internet paralela, que é claro, fruto de roubo das conexões oficiais
Em suma, tanto os habitantes das comunidades quanto aqueles que exercem alguma liderança dentro delas, querem usufruir dos serviços que concessionárias e operadoras podem oferecer sem ter que arcar com o ônus, ou seja, com o pagamento ou com a necessidade de oferecer condições para que os técnicos possam trabalhar. Não admira que com tantas perdas causadas por ligações clandestinas, vandalismo de equipamentos e calotes dos consumidores, o Grupo Light tenha entrado em recuperação judicial em maio de 2023 e busque reestruturar cerca de R$ 11 bilhões de reais em dívidas.
Qual o pior cenário que pode concretizar-se? Se a recuperação judicial da empresa não tiver sucesso e ela for à falência, será necessário que o governo do Estado realize a encampação, isto é, retome os serviços para que eles não sejam interrompidos pelo fato der a empresa não ter mais condições financeiras de continuar as operações. Isso envolverá, claro, aportes de recursos públicos para a manutenção dos serviços e prejuízos, já que a empresa deixará de pagar os impostos incidentes sobre suas atividades. Em suma, para o Poder Executivo do Estado, uma eventual falência e encampação da Light implicará aumento de despesas e diminuição de receitas.
Considerando que o Rio de Janeiro, que está em Regime de Recuperação Fiscal desde 2017 e tem uma dívida com a União que segundo o governo estadual é de R$ 188 bilhões, se esse pior cenário se realizar a situação fiscal do Estado ficará ainda mais deteriorada. Qual será a solução? Flexibilizar ainda mais o pagamento da dívida com a União. Em bom português flexibilizar significa assinar outros “Devo não nego pago quando puder” para substituir os antigos, emitidos quando da implementação do último Plano de Recuperação Fiscal, em 2022.
Em suma, a violência dos poderes paralelos que controlam determinadas porções do território do Estado do Rio de Janeiro, o comportamento dos moradores desses locais que desrespeitam a lei mas não querem ser punidos por isso, violam os direitos de empresas, inviabilizam suas atividades, o que requer a intervenção do Estado tanto no nível estadual quanto no federal para arcar com os prejuízos. Em última análise os desdobramentos econômicos, fiscais e morais da violência em terras cariocas são compartilhados por todos os brasileiros naquilo que eles têm de deletério.
Diante dessa cascata de acontecimentos quem pode nos salvar? Na França da segunda metade do século XVIII o pintor Greuze tinha a resposta: era a classe média, que ele retratava em seus quadros desfrutando da paz e do modesto contentamento proporcionados pelo comportamento regrado, livre de excessos e virtuoso. Conforme o trecho que abre este artigo, analisando a obra de Greuze, que glorificava a pureza de sentimentos e a inocência das meninas, dos meninos, dos pais de família, das noivas que habitavam as pequenas cidades, Will Durant considerava que os personagens pintados por Greuze eram os que salvavam a França. Em meio à corrupção, ao cinismo, ao despudoramento da aristocracia, que levará ao golpe de morte dado a ela na Revolução, o filósofo e historiador americano vê a classe média como aquela que trabalhando e agindo de maneira ordeira carregará o país nas costas e viabilizará sua continuidade em meio ao turbilhão revolucionário.
Prezados leitores, será que a classe média no Brasil terá a capacidade de praticar a virtude para fazer o país andar a despeito das ameaças da violência do crime organizado? Ou será que no final seremos todos corrompidos e acabaremos seguindo a máxima hobbesiana de sermos cada um o lobo de nós mesmos?