Não se pense que, por afrontarem os padres como afrontavam, os habitantes da vila fossem menos religiosos. Ao contrário, era um povo temente aos céus, e capaz de manifestações tremendas para conseguir seus favores, como provam os testamentos da época, documentos de valor inigualável para jogar alguma luz nos desvãos das consciências da época. […] Vender índio, à luz do dia, com registro em documento, pouco se ousa, mas o repasse, nos atos sucessórios, é praticado sem constrangimento, e tem justificativa nos “usos e costumes da terra”
Trecho retirado do livro “A capital da solidão – Uma história de Sâo Paulo das origens a 1900” do historiador e jornalista Roberto Pompeu de Toledo
Ameaçando os homens com poderes invisíveis, eles [a Igreja e o Estado] força-os a sofrer em silêncio as misérias com as quais os poderes visíveis os afligem. Eles são levados a esperar que se concordarem em ser infelizes neste mundo serão felizes no próximo.
Trecho retirado do livro “O Cristianismo Exposto” do filósofo francês de origem alemã Paul Henri Dietrich dꞌHolbach (1723-1789)
DꞌHolbach rejeita a ideia cristão-voltairiana de que o homem nasce com o sentido do que é certo e o que é errado. A consciência não é a voz de Deus, mas do policial […] O melhor a que podemos aspirar é uma consciência formada por uma melhor educação, pelo hábito adquirido de olhar para os efeitos que nossas ações têm sobre os outros e sobre nós mesmos e por uma opinião pública mais saudável que um indivíduo inteligente hesitará em ofender.
Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981)
Prezados leitores, na semana passada, para marcar a celebração dos 470 anos da cidade de São Paulo, lembrei da origem da cidade ligada às relações de amor e ódio entre os jesuítas, que no alto do morro do qual se avistavam os rios Anhangabaú e Tamanduateí celebraram uma missa em 25 de janeiro de 1554, os colonos e os índios. Naquela semana meu foco foi no lado do triângulo amoroso entre jesuítas e índios, que foram introduzidos na fé católica e na disciplina do trabalho nos aldeamentos invadidos e destruídos pelos colonos. Nesta semana retomo tais relações enfocando o outro lado do triângulo, isto é, as relações entre os colonos e os índios, os quais saíram da tutela dos padres e passaram para o domínio dos colonos. Meu objetivo é explorar o tipo de domínio e as consequências dele à luz das ideias do filósofo materialista e ateu d’Holbach, um dos colaboradores da Enciclopédia editada por Diderot (1713-1784) e d’Alembert (1717-1783).
Como explica Roberto Pompeu de Toledo em sua história da cidade de São Paulo, as incursões militares dos bandeirantes pelo interior do país permitiram-lhes tomar para si a mão de obra indígena que estava sob a tutela dos jesuítas. Ela serviu a dois propósitos: o primeiro foi o de fornecer os braços para a prática da agricultura do trigo na cidade de São Paulo e arredores e o segundo foi servir como a infantaria dos grandes da terra em suas expedições de conquista. Esses braços dourados pelo sol da terra na prática eram propriedade daqueles que os tinham aprisionado ou daqueles que os haviam comprado dos caçadores de índios. Conforme o trecho que abre este artigo, é verdade que não se falava claramente que os índios pertenciam aos seus senhores, como se falava dos negros africanos comprados e vendidos como escravos, afinal a escravidão indígena era proibida por lei, pois considerava-se que os índios tinham alma. De qualquer forma, os índios eram citados nas disposições testamentárias dos colonos, o que mostra que como diria um advogado no século XXI, faziam parte do espólio do de cujus e eram objeto de sucessão hereditária.
Em suma, na prática os nativos da Terra Brasilis eram tão cativos quanto os negros africanos e obviamente submetidos ao mesmo tratamento de trabalhos forçados e extenuantes na agricultura. E no entanto, os titulares da propriedade sobre esses recursos humanos não deixavam de ser tementes a Deus e a seguir todos os rituais da Igreja Católica, frequentando missas, participando de procissões, mandando rezar missas em prol da alma de parentes e de si próprios. Como conciliar essa observância estrita das regras exteriores da religião cristã e ao mesmo tempo violar cotidianamente a integridade física e espiritual dos aborígenes, forçando-os a extensas jornadas de trabalho às quais seu modo de vida anterior não os acostumara? Afinal o fato de os índios serem considerados seres com alma não os colocava em pé de igualdade com os brancos? Como explorá-los seja como bucha de canhão ou como trabalhadores agrícolas, semeando, carpindo e colhendo sob o sol tropical? É para resolver esta aparente contradição que recorro às ideias de d’Holbach.
Conforme pode ser depreendido do trecho que abre este artigo, para o filósofo a Igreja e o Estado estão em conluio para estabelecer uma ordem social que garanta a preservação do poder das duas instituições. A Igreja ensina aos despossuídos, que não têm oportunidade de prosperar neste mundo porque nasceram no andar de baixo da sociedade, a tolerar a opressão terrena para conquistarem a felicidade no outro mundo. Sob o ponto de vista do Estado tal doutrinação é fundamental para garantir que os habitantes do andar de cima que controlam o governo possam viver à tripa forra impunemente, gozando dos seus privilégios sancionados pelos ensinamentos morais da Igreja. De acordo com d’Holbach, o ser humano não nasce com um senso moral inato, dádiva do Criador. A prova disso é o fato de o ser humano cometer as maiores barbaridades e justificá-las em nome da religião: se ele o faz é porque ele estabeleceu o que é certo ou errado não de acordo com uma bússola moral infalível, que não existe, mas de acordo com sua experiência, com uma educação e raciocínio distorcidos e com a corrupção dos costumes e da opinião pública engendrados pela concentração de poder e de riqueza nas mãos de poucos. Tal concentração torna os privilegiados insensíveis ao sofrimento dos pequenos e inclinados a chafurdar no vício e na luxúria.
Não havendo como garantir um senso ético por meio da religião, que na verdade é só instrumento de manipulação dos que não têm pelos que têm muito, o melhor a fazer é incentivar o aumento do conhecimento pela educação para combater mitos tais como a vida após a morte e a imortalidade da alma e evitar a concentração da renda distribuindo terra aos despossuídos. Só assim o homem viverá em um meio adequado que lhe permita ter consciência de sua verdadeira natureza, das suas limitações e dos efeitos que suas ações têm sobre os concidadãos, permitindo-lhe melhorar seu comportamento em um ambiente menos desigual, em que a correlação de forças entre os diferentes grupos sociais é mais equilibrada. Sob essa ótica, a religião a serviço dos poderosos só reforça os maus hábitos das classes ricas, porque lhes dá uma justificativa moral para explorar os despossuídos como se elas estivessem fazendo o maior dos bens, em nome de Deus.
Prezados leitores, uma lástima que as ideias do Barão de d’Holbach, que tanto inspiraram a Revolução Francesa, nunca tenham chegado às plagas tropicais. O resultado foram séculos e séculos de escravidão de indígenas e negros, de crimes sem castigo, tudo sob a fachada dos rituais religiosos praticados pelos ricos em benefício próprio. As consequências nós as vivemos até hoje e basta uma volta pelo centro histórico de São Paulo para observarmos o exército de despossuídos, descendentes daqueles que viveram nos aldeamentos jesuítas ou foram trazidos da África. Talvez algum dia nosso nível de educação e de prosperidade material seja suficiente para darmos o salto de qualidade de que fala d’Holbach e nos tornemos mais cônscios dos efeitos das nossas ações ao nosso redor e, portanto, mais éticos. Esperemos esse dia chegar sabendo que nem tudo pode ser feito em nome de Deus.