Os jesuítas, se não escravizavam, na acepção plena da palavra, não deixavam de praticar uma violência contra o índio ao tentar, bruscamente, impor-lhe valores como a monogamia, ou, mais que isso, ao tentar regular-lhe o cotidiano, dividindo-lhe o tempo em padrões por ele desconhecidos – hora do trabalho e hora da doutrina, hora do descanso e hora da oração. Sobretudo, não seria propriamente um ambiente de liberdade aquele que os jesuítas preparavam para os índios, cercando-os em aldeamentos e, também eles, obrigando-os aos trabalhos.
Trecho retirado do livro “A capital da solidão – Uma história de Sâo Paulo das origens a 1900” do historiador e jornalista Roberto Pompeu de Toledo
Debaixo do ponto de vista da Igreja repetimos que é forçoso reconhecer terem os padres agido com heroísmo, com admirável firmeza na sua ortodoxia; com lealdade aos seus ideais; toda crítica que se faça à interferência deles na vida e na cultura indígena da América – que foram os primeiros a degradarem sutil e sistematicamente – precisa de tomar em consideração aquele seu superior motivo de atividade moral e religiosa. Considerando-os, porém, sob outro critério – puros agentes europeus de desintegração de valores nativos – temos que concluir pela sua influência deletéria. Tão deletéria quanto a dos colonos, seus antagonistas, que, por interesse econômico ou sensualidade pura, só enxergavam no índio a fêmea voluptuosa a emprenhar ou o escravo indócil a subjugar e a explorar na lavoura.
Trecho retirado do livro “Casa Grande & Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987)
Prezados leitores, nesta semana a cidade de São Paulo comemora 470 anos. Em homenagem à minha cidade retomo minhas caminhadas reais e espirituais pelo centro histórico que, como já expliquei aqui neste humilde espaço, não é assim tão repleto de prédios antigos como outras cidades brasileiras. Detenho-me sobre a enorme escultura do padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597), na praça da Sé, cercado dos índios que ele catequizou ou tentou catequizar. Os índios mostram-se sérios, contritos e humildes perante o padre, feliz em dedicar-se ao projeto da sua vida, que era espalhar a fé católica pelo mundo. Não há como pensar em São Paulo sem pensar que a cidade não teria sido criada e se desenvolvido sem o triângulo de amor e ódio estabelecido entre os jesuítas, os indígenas e os colonos.
Roberto Pompeu de Toledo narra em sua história da cidade como os jesuítas tentaram se estabelecer na cidade para arregimentar os índios e colocá-los em um lugar confinado onde pudessem lhes inculcar os valores cristãos pelo trabalho e pela disciplina. O Pátio do Colégio é o local na cidade do primeiro aldeamento de indígenas, pois foi lá que se instalou a modesta casa que serviria de colégio dos jesuítas. A Ocorre que havia outros interessados no destino que se daria aos aborígenes brasileiros: homens como Fernão Dias Pais, Antônio Raposo Tavares, Manuel Preto, hoje chamados de bandeirantes, eram empreendedores que organizavam expedições de caça aos índios, marchando pelo interior do Planalto Paulista para conseguirem apreender aqueles que serviriam de mão de obra para atividades agrícolas e domésticas em uma cidade que não tinha pujança econômica suficiente para adquirir os negros comercializados nas cidades litorâneas. E nessa marcha eles bateram de frente com os aldeamentos criados pelos jesuítas no Guairá uma região que hoje é o oeste do estado do Paraná: a concentração de indígenas nesses locais fazia com que o apresamento fosse mais fácil do que tentar lutar com tribos que tinham capacidades militares: os jesuítas, desarmados, podiam ser colocados para correr se os chefes das expedições cercassem as aldeias e as atacassem com as flechas dos soldados dessas expedições, que eram indígenas, e com os bacamartes dos bandeirantes. E assim foi feito, de modo que já em 1637 as missões no Guairá haviam sido totalmente destruídas. O alvo seguinte passou a ser os aldeamentos criados pelos jesuítas na região do Tape, em uma área junto ao rio Uruguai, no que hoje é o estado do Rio Grande do Sul, também alvos da sanha destruidora dos bandeirantes. Como último capítulo do embate de jesuítas e colonos pelos índios, em 25 de julho de 1640, as oito vilas existentes na então capitania de São Vicente decidiram pela expulsão dos jesuítas.
Este enredo que marca a história da cidade de São Paulo, de ondem partiam as expedições de destruição dos aldeamentos e de aprisionamento dos indígenas, pode ser contemplado no filme a Missão, de 1986, um drama histórico estrelado por Robert de Niro e Jeremy Irons que mostra como uma missão na região do rio Iguaçu foi dizimada pelos colonos. Ali estão os índios vestidos de batas cantando no coro da igreja, trabalhando nas oficinas de carpintaria e nas lavouras, guiados por padres que heroicamente tinham se arriscado de pés descalços, subindo cachoeiras e cruzando rios para fundarem suas utopias terrenas, em que os habitantes do Novo Mundo praticariam a religião cristã livres da corrupção que acometera a Igreja na Europa e que levara à Reforma Protestante. Em a “Missão” padres e índios resistem até a morte à cobiça cruel e assassina dos colonos, de modo que o filme expressa uma clara dicotomia: de um lado a luz representada pela vida na comunidade cristã, feita de oração, música e trabalho, de outro os portugueses e espanhóis que queriam pegar os índios a laço para fazê-los trabalhar seja nas minas de ouro e prata ou nas plantações. Mas será que tudo era assim preto no branco? Ou haveria cinquenta tons de cinza neste triângulo amoroso e odioso entre padres, índios e colonos?
Em seu livro Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre mostra os detalhes desses diferentes tons. Conforme descreve o trecho que abre este artigo, é admirável o esforço dos jesuítas que se embrenharam em florestas, rios mares desconhecidos pelos europeus, sujeitos a doenças, a serem recebidos com uma saraivada de flechas por aqueles que tentavam cooptar. Por outro lado, é inegável, como Roberto Pompeu de Toledo também aponta em sua história de São Paulo, que o regime a que os jesuítas submetiam os aborígenes podia ser menos intenso do que o trabalho escravo para os colonos, mas não deixava de levar a um único lugar, a degradação material, cultural e espiritual dos aborígenes. Acostumados a viver nus e a tomar banhos de rio várias vezes ao dia, os índios foram obrigados, para o bem da moralidade cristã, a vestir-se, o que os levou a tornar-se sujos e a adquirir doenças de pele. Acostumados à autoridade dos chefes e ao sistema de vida comunal, foram submetidos à autoridade dos padres e a viver confinados nas aldeias, o que destruiu seus hábitos nômades. Polígamos, foram submetidos à monogamia cristã. E seus cantos de “agreste sabor” foram substituídos pelos cantos devotos, secos e mecânicos dos jesuítas, que só falavam de Nossa Senhora e dos santos, sem falar do amor. Para não falar das danças e festivais, totalmente suprimidos, privando-lhes de oportunidades de dar vazão a sua energia animal. Em suma, para Gilberto Freyre o tratamento dos jesuítas, cheios de boas intenções e por isso menos cruéis e mais condescendente do que os colonos, fez de qualquer forma os indígenas perderem a capacidade de criar sua própria cultura.
Prezados leitores, julgamentos morais são sempre complexos, porque considerando que a humanidade não chegou a um acordo sobre os fundamentos da ética, não é possível estabelecer com certeza o que é certo e o que é errado. Heróis no filme a “Missão”, genocidas culturais e espirituais no livro “Casa Grande & Senzala, os jesuítas deixaram seu traço indelével no Brasil e na cidade de Sâo Paulo em particular. Se não for para dar-lhes viva em 25 de janeiro próximo, ao menos reconheçamos que sem o trabalho deles, sem suas disputas com os colonos, a cidade teria sido outra.