Um dia Dostoievski se saiu com essa observação enigmática: “A Beleza salvará o mundo.” Que espécie de declaração é essa? Durante muito tempo fiquei convencido de que se tratava de meras palavras. […] Existe, entretanto, uma certa peculiaridade no conceito da arte: de fato, uma verdadeira obra de arte irradia uma força de persuasão absolutamente irrefutável, que obrigada até o coração mais endurecido a se render. É possível compor um discurso político aparentemente elegante e fluente, um artigo forte, um programa social ou um sistema filosófico baseados no mal-entendido e na mentira. O lado oculto e distorcido poderá não aparecer de súbito.
Trecho retirado do livro “Uma palavra de verdade” do escritor russo Alexander Solzhenitsyn (1918-2008)
Mas meu querido patrão, quem é que pode ajudar o próximo? Quem consegue penetrar em sua alma? A pessoa tem que ajudar a si mesma!
Trecho retirado do conto “Relíquia Viva” do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)
Os colaboradores tinham uma visão muito simples da natureza humana, uma avaliação muito otimista da honestidade da razão, um entendimento muito vago da sua fragilidade, uma perspectiva muito otimista de como os homens iriam utilizar o conhecimento que a ciência lhes estava dando.
Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a Enciclopédia ou Dicionário racional das ciências, das artes e dos ofícios editada pelo escritor francês Denis Diderot (1713-1784) entre 1751 e 1772
Epifania – uma manifestação ou percepção normalmente repentina da natureza ou do significado essencial de algo
Trecho retirado do verbete de epifania da edição de 1966 do dicionário Webster’s
Prezados leitores, vocês já tiveram uma epifania, de acordo com a acepção descrita na abertura deste artigo? Eu já tive e vou descrever-lhes o momento para que possam analisar se já passaram pela mesma experiência. Meu momento de percepção de uma verdade fundamental veio ao ler o conto Relíquia Viva, já tratado neste humilde espaço em “De Diógenes a Lukeria”, em 2021. Relíquia Viva narra o encontro do dono de uma propriedade rural, que passara vários anos estudando em Moscou, e uma serva, Lukéria, a quem ele não via há muito tempo. Lukéria na sua mocidade havia sido “alta, roliça, branca, corada, amiga do riso, da dança e do canto”. Quando o patrão a encontra ela está entrevada em uma cama, após ter caído de uma certa altura, e dependente de pessoas que levem a ela o que comer. O patrão fica chocado com a aparência de múmia da serva e oferece levá-la para um hospital, para que ela tenha companhia e talvez possa curar-se.
O trecho citado na abertura deste artigo me levou ao meu momento epifânico: ele mostra a sabedoria e lucidez de uma mulher que tem a vida destruída por um acidente e que sabe que ela não pode esperar nada das pessoas. Seu ex-noivo a visita um dia, mas ele seguiu em frente, sem olhar para trás e casou-se com outra. A visita dele faz Lukéria chorar, mas isso não quer dizer que ela guarde rancor ou tenha raiva do mundo e da humanidade. A serva resigna-se com sua tragédia e aproveita a vida como pode, presa a uma cama: ouve o cantar dos pássaros e a miríade de sons da natureza. Tem uma vida mental intensa que compensa o cotidiano modorrento: ela sonha muito e conta alguns desses sonhos ao patrão durante o encontro.
Enfim, Lukéria é consciente de que ficará sozinha pelo resto dos seus dias, mas não reclama, pois sua experiência “das profundezas degradantes da existência” para citar Alexander Solzhenitsyn a levam a um estágio de transcendência espiritual em que ela valoriza as pequenas alegrias do dia-a-dia, incluindo a visita inesperada e rápida de um patrão que tem todas as condições de desfrutar da vida e está lá ao lado de Lukéria de passagem. O que é comovedor no conto e nos leva a uma empatia profunda é que a camponesa não tem pena de si mesma. É justamente por isso, por sua visão serena das coisas, sem melodramas, que seu sofrimento fica mais evidente para nós leitores do conto. Vemos à nossa frente o patrão afortunado, que no verão se diverte indo caçar pelos seus campos, e a camponesa mumificada pelos anos de reclusão e que morre algumas semanas mais tarde, depois desse encontro com o patrão, não tendo chegado aos 30 anos.
Esse contraponto entre a sorte de um e de outro nos mostra a crueldade e a injustiça da vida, mas também sua beleza, a beleza da solidariedade, da bondade, da empatia, da Natureza, por mais fugazes que sejam. É essa verdade que a epifania revela aos que choram profusamente ao lerem este conto, como foi meu caso. E uma epifania, feita da revelação de um momento na vida de um personagem, tem um poder de persuasão muito maior do que qualquer discurso filosófico ou político, como explica Solzhenitsyn em seu livro “Uma palavra de verdade …” De acordo com o prêmio Nobel de Literatura de 1970, a obra de arte, fruto da consciência aguda do artista sobre a beleza e a fealdade da contribuição humana, vai ao cerne da questão como nenhum outro tipo de discurso porque é visceral e autêntica, mostrando a vida como ela é, ao passo que um programa político ou um sistema metafísico podem ser simplesmente uma racionalização de interesses individuais que procuram prevalecer pelo convencimento.
Sobre isso já alertavam Will e Ariel Durant ao comentarem sobre a Enciclopédia que foi o marco do Iluminismo na França. O objetivo dos seus editores era tornar a razão o novo objeto de culto, fazer o conhecimento obtido pelo exercício das faculdades mentais sobrepor-se ao dogma, o progresso material advindo das conquistas científicas e tecnológicas sobrepor-se à contemplação resignada da morte. A razão proposta pelos autores dos verbetes da Enciclopédia podia livrar a humanidade das superstições, dos medos infundados, do fatalismo, do fanatismo religioso, mas ela também podia ser um instrumento de manipulação e opressão do homem pelo homem escondida sob a capa das verdades trazidas pela ciência: se Diderot tivesse vivido o suficiente ele teria visto os usos que o conhecimento científico teve para a indústria de matar pessoas, desde os canhões das guerras napoleônicas no século XIX até os artefatos nucleares no século XX.
Prezados leitores, o fato é que há verdades e verdades. As verdades dos cientistas que para os Enciclopedistas inaugurariam uma nova era na história da humanidade, livre como jamais do jugo da religião, e as verdades dos artistas, reveladas em cenas, em atos e falas de personagens que tocam no âmago da experiência humana, a qual vai além das nossas sensações, da nossa fisiologia, da nossa atividade cerebral. São relíquias vivas de um drama que se desenrola desde que o homem expressou sua consciência através de imagens e símbolos e se desenrolará enquanto o homo sapiens caminhar sobre a Terra.