Nas Histórias, Heródoto narra o suposto encontro entre Sólon e Creso, então rei da Lídia, em Sárdis, depois que ele deixou Atenas após a instituição das leis por ele reformadas. A conversa entre eles versa sobre a noção de felicidade, em que se contrastam duas concepções morais decorrentes de dois modos de vida distintos (a austeridade ateniense em oposição à opulência lídia): enquanto Creso identifica a felicidade com riqueza e poder, Sólon a entende como uma combinação de excelência moral, bens externos (como ter uma família bem constituída) e boa fortuna.
Trecho retirado de uma nota de rodapé à tradução de Protágoras, de Platão (427 a.C.-347 a.C.), por Daniel R. N. Lopes
Parece incrível que nesta encruzilhada [final do século VII a.C.] da vida de Atenas, frequentemente repetida na história das nações, um homem tivesse sido encontrado que, sem nenhum ato de violência e nenhuma animosidade no discurso, conseguiu persuadir os ricos e os pobres a chegarem a um compromisso que não somente evitou o caos social, mas estabeleceu uma nova e mais generosa ordem política e econômica para todo o restante da vida independente de Atenas. A revolução pacífica de Sólon é um dos milagres encorajadores da história.
Trecho retirado do livro “A Vida da Grécia”, de Will Durant (1885-1981), professor de filosofia e historiador americano
Nos séculos VII e VI a.C. a maior parte das cidades gregas foi deposta por líderes denominados tiranos. Eles basicamente eram reformistas que derrubaram as aristocracias locais fechadas, cancelaram as dívidas e redistribuíram a terra ao povo. Sólon aboliu a servidão por dívidas em Atenas em 594 a.C. (mas não fez reforma agrária) por meio “da destruição dos ônus,” sua seisachtheia, referindo-se ao ônus das dívidas.
Trecho retirado de entrevista do economista americano Michael Hudson (1939- ) a Martin North da Digital Finance Analytics em 20 de março de 2020
Prezados leitores, vocês já ouviram falar dos Sete Sábios da Grécia? Foram em sua maior parte legisladores ou personagens que exerceram altos cargos públicos e cuja sabedoria se exprimia por meio de máximas morais ou práticas úteis na vida política da cidade. Para citar algumas delas, de autoria de Quilon de Esparta: “a virtude humana é prever o futuro na medida da capacidade da razão”; “controle sua língua, especialmente num banquete”; “não ultraje uma pessoa morta”; “respeite a velhice; “vigie a si mesmo”; “não deixe que a língua suplante o pensamento”; “não escarneça do infortúnio alheio”; “uma punição é preferível a uma vantagem vergonhosa, pois a primeira é dolorosa uma única vez, ao passo que a segunda o é pelo resto da vida”. Além de Quilon, esses sábios incluíam a figura de Sólon (640 a.C.-558 a.C.), estadista de Atenas, o qual será objeto deste humilde artigo por sua relevância para o momento presente.
Sólon é conhecido por ter dado a Atenas uma constituição, isto é um conjunto de leis para a condução dos negócios da cidade, que se aplicavam a todos os homens livres, ricos e pobres, o que acabou lançando as bases para a democracia que floresceria na cidade no século V a.C. Quando perguntado em que consistia um estado em ordem e bem constituído, ele respondeu: “Quando as pessoas obedecem aos governantes e os governantes obedecem às leis.”
Essa submissão dos governantes a algo maior do que eles fica clara na história – citada na abertura deste artigo – que Heródoto conta a respeito de um suposto encontro entre o rei da Lídia, Creso e Sólon. Creso pergunta a Sólon se este não o considerava um homem feliz, já que ele tinha poder e riqueza. Sólon responde que é temerário considerar um homem feliz, considerando o futuro incerto e as mudanças na fortuna que poderiam advir. Só pode ser considerado feliz a quem os deuses agraciaram com a felicidade até o fim. Pavonear-se por sua prosperidade presente é uma insolência desarrazoada porque a vida do homem poderia mudar para pior. Aliás, o destino de Creso é emblemático a esse respeito, pois foi destronado pelo rei da Pérsia, Ciro, em 546 a.C.
Assim, a boa fortuna era fundamental para a felicidade e tal fortuna não dependia do ser humano, portanto era preciso cultivar a humildade e não tripudiar sobre os outros. Para evitar que os ricos fizessem uso do seu poder e riqueza para esmagar os pobres e vulneráveis, Sólon cancelou todas as dívidas fossem elas devidas a particulares ou ao Estado. As pessoas presas ou escravizadas por dívidas foram soltas ou libertadas e conforme Michael Hudson explica em sua entrevista, citada na abertura deste artigo, Sólon inscreve-se na lista de líderes na Antiguidade que tinham a consciência de que dívidas impagáveis tinham que ser simplesmente canceladas. Obrigar as pessoas a honrar pagamentos à custa da sua própria subsistência ou de sua própria liberdade era lançar os germes da revolta social. O calote infligido aos credores pelo perdão das dívidas era o preço a pagar para que largas fatias da população não fossem depauperadas a ponto de cair na mais absoluta miséria e perderem a fé no sistema e o comprometimento com sua manutenção.
É por essa razão que Will Durant chama Sólon de um milagre da história: em um momento em que os pobres endividados não acreditavam nas leis e na justiça que sempre decidia a favor dos ricos e em que os ricos sofriam as consequências do calote de dívidas que só podiam ser pagas com o sangue, o suor e as lágrimas dos devedores, as reformas de Sólon criaram previsibilidade que por seu turno gerou prosperidade para todos. A previsibilidade de leis aplicáveis a todos que substituíram uma miríade de decretos incalculáveis e eternamente mutáveis, e a previsibilidade do perdão de dívidas que permitiram aos pobres sair do círculo vicioso do endividamento e da penúria material e assim melhorar suas perspectivas.
Prezados leitores, Michael Hudson defende que a receita de Sólon seja aplicada nos Estados Unidos aos indivíduos que devem mais do que o valor do seu patrimônio e aos Estados soberanos que seguem a cartilha do FMI para impor a austeridade a suas populações para permanecerem bons pagadores aos credores. Segundo ele, só livrando os cidadãos do peso de dívidas impagáveis é que se pode começar a construir uma nova economia baseada não nas operações financeiras, mas sim na produção de coisas reais.
Essa nova economia, não financeirizada, melhorará a situação do povo porque ela tornará a vida menos incerta, mais previsível e pronta para ser iniciada de novo, livre do fardo das dívidas. Oxalá que Javier Milei, o novo presidente da Argentina, ouça falar de Sólon e de sua fórmula para evitar a revolta social e a divulgue ao FMI, quando for renegociar a divida impagável do país com seus credores internacionais. Como todo sábio digno de nome, Sólon deixou-nos um legado de lições pertinentes em qualquer época: meden agan, nada em excesso, nem dívidas nem leis. Aproveitemo-lo!