Amar e pensar: essa é a verdadeira vida dos espíritos
Aforismo de François Marie Arouet, escritor francês conhecido como Voltaire (1694-1778), citado pelo filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970) em seus “Ensaios Céticos”
Da minha parte eu agradeço à sábia natureza que para minha felicidade deu-me à luz nesta época tão criticada por nossos críticos melancólicos. Este tempo profano é particularmente adequado para meu modo de ser, eu adoro o luxo, mesmo uma vida doce, todos os prazeres, as artes na sua variedade, a limpeza, o gosto e os ornamentos.
Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando um poema de Voltaire denominado “Le Mondain”
Nós compartilhamos com eles a compreensão do limite atingido pelo produtivismo, mas o produtivismo não caiu do céu, ele tem uma causa profunda, que se chama capitalismo. Como consequência, se você quer praticar ecologia e não ser anticapitalista faça jardinagem e chame isso de ecologia, mas isso não é ecologia: não há ecologia política possível fora do âmbito de uma ação anticapitalista determinada e quando digo ação anticapitalista determinada é colocar regras.
Trecho de uma palestra dada pelo político francês Jean-Luc Mélenchon (1951-, ex-candidato à presidência da França, em Estrasburgo em 5 de novembro para falar sobre seu mais recente livro “Faites Mieux”
Prezados leitores, de acordo com o verbete do meu dicionário Larousse, Voltaire foi o ídolo da burguesia liberal anticlerical. Liberal porque ele defendia a liberdade de pensamento, a liberdade de ser julgado de maneira justa por seus pares e não ser objeto de prisão ou privação da propriedade de maneira arbitrária. Anticlerical porque ele denunciou a hipocrisia dos membros corruptos e venais da Igreja e as superstições irracionais herdadas da Idade Média que atrapalhavam o caminho da razão e da ciência. Nesta semana, falarei um pouco sobre a dolce vita proposta e praticada por Voltaire no século XVIII, para contrapô-la ao fim da vida previsto por outro francês, Jean-Luc Mélenchon, em pleno século XXI.
Conforme o segundo trecho que abre este artigo, Voltaire considerava-se privilegiado por ter nascido no século XVIII, o que havia permitido a ele aproveitar todas as liberdades de que as pessoas da sua classe social e local de nascimento (Paris, França), podiam desfrutar, já que os medos, superstições e proibições impostos pela Igreja Católica durante mais de mil anos estavam sendo superados pelo gozo da vida e das possibilidades que ela oferecia. A Voltaire elas foram muitas, especialmente porque paralelamente às atividades de escritor, poeta, dramaturgo, historiador, filósofo e divulgador da ciência de Newton na França, ele sabia ganhar dinheiro. O autor de Candide era investidor em títulos públicos, importador de produtos, financista e empreendedor e graças a suas atividades econômicas nunca lhe faltaram meios materiais para gozar do luxo, das artes, de instalações confortáveis e belas onde pudesse dedicar-se à leitura e à reflexão e a amar sua Marquesa de Châtelet, Émilie Le Tonnelier de Breteuil com quem conviveu por vários anos no castelo de Cirey, de propriedade do Marquês de Châtelet. Voltaire foi tão felizardo na vida, que o marido de Émilie nunca fez nenhuma oposição ao relacionamento entre os dois, e continuou a morar no castelo. Além disso, Voltaire teve uma vida longeva, chegando aos 84 anos de idade e seguindo uma receita simples para tanto: evitando os médicos, fazendo exercícios, mantendo uma dieta equilibrada, praticando o jejum e ingerindo líquidos, conforme descreveu seu secretário Longchamp.
Considerando os frutos que sua abordagem racional e materialista da vida deu nos próximos séculos em termos de proporcionar confortos materiais à humanidade, provavelmente Voltaire sentir-se-ia mais privilegiado ainda se tivesse nascido em meio à riqueza da nossa civilização capitalista. Afinal ele era alegre, inteligente, jovial e otimista. O contrário do que é Jean-Luc Mélenchon, um francês nascido no século XX, mas que em plena abundância de bens materiais e espirituais revela no título do seu mais recente livro “Faites Mieux” a frustração com aquilo que a geração dele fez ao planeta Terra, colocando-o à beira do colapso ambiental.
Conforme o terceiro trecho que abre este artigo, Mélenchon atribui tal colapso ao produtivismo capitalista. O funcionamento de uma economia capitalista exige a produção ininterrupta de produtos para atender à demanda no mercado e para criar sua própria demanda no mercado, gerando crescimento econômico e fazendo a roda girar. Tal produtivismo é incompatível com a preservação ecológica porque há uma falta de sincronia entre o tempo da produção e o tempo do meio ambiente: um saco plástico leva 30 segundos para ser produzido, é barato, útil e demandado, mas leva 400 anos para desaparecer da face da Terra.
Daí que para salvar o planeta não é possível mantermos a estrutura capitalista, fundada na produção contínua sem consideração às externalidades por ela causadas. É preciso superar o mercado, tomando decisões coletivas e impondo regras que limitem a autonomia individual para produzir e consumir livremente, como se os recursos naturais fossem infinitos. É a isso que Mélenchon chama de ecologia política, a atuação em prol do meio ambiente pela mudança no sistema econômico e não no nível individual das ações isoladas de plantar árvores ou catar lixo na praia. Nesse sentido, “Faites Mieux” é uma conclamação às novas gerações para que rompam com os paradigmas vigentes no mundo e criem uma maneira de salvar o planeta do próprio homem, melhorando sua relação com a natureza. Para Mélenchon a catástrofe ambiental, em termos de subida do nível dos oceanos, de secas, da falta d’água, de tornados, de ciclones já está entre nós e devemos agir o mais rápido possível.
Prezados leitores, será que o século XXI prenuncia o fim da dolce vita proporcionada pela imensa capacidade de criação de riquezas do capitalismo à custa da natureza? Será que devemos ter medo do fim do mundo, como tinham os piedosos e pecadores homens da Idade Média, e expiar nossa culpa por causa da nossa superexploração da natureza? Ou será que nossa atitude deve ser a do otimismo ilustrado de Voltaire, para quem amar e pensar eram a solução de todos os problemas? Será que no final o capitalismo, pela sua capacidade de inovação, encontrará remédios para os problemas que ele mesmo criou? Aguardemos, e enquanto isso, sigamos as máximas de vida voltairianas, pois tenho certeza que até o catastrófico e melancólico Mélenchon também o fará.