Fica claro que o pensamento não é livre se a defesa de determinadas opiniões torna impossível à pessoa sustentar-se. Também está claro que o pensamento não é livre se todos os argumentos de um lado só podem ser descobertos por meio de uma busca diligente. […] A credibilidade é um mal maior nos dias atuais do que nunca foi antes, porque devido à expansão da educação, é muito mais fácil do que costumava ser espalhar a desinformação, e devido à democracia, a divulgação de desinformações é mais importante do que antes para os detentores do poder. Daí o aumento na circulação de jornais.
Trecho retirado de “O Livre Pensamento e a Propaganda Oficial” do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), incluído em “Ensaios Céticos”, publicado em 1928
Prezados leitores, já abordei aqui neste meu humilde espaço a eclosão do livre-pensamento na Europa no século XVII e inclusive os perigos que muitos viam em tal eclosão. Naquele contexto histórico, livre-pensamento significava o pensamento que não aceitava os dogmas da religião tradicional e por isso repudiava uma interpretação literal da Bíblia. Nesta semana, meu foco será em um outro sentido de livre-pensamento, explorado por Bertrand Russell no ensaio cujo trecho é aqui citado: o sentido de que o livre-pensamento é aquele que está exposto à livre concorrência das diferentes crenças, porque todas elas conseguem expor suas razões, não havendo nenhuma vantagem ou desvantagem legal ou pecuniária a elas atrelada.
Para o filósofo britânico, esse é um ideal que nunca será atingido plenamente, mas que deve ser perseguido de toda forma, para que nós, seres humanos, fiquemos o mais próximo dele que pudermos, pensando o mais livremente possível e assim chegando à verdade possível. E para fazê-lo a receita é simples: ouvir todos os lados da questão, tentar estabelecer todos os fatos relevantes, controlar nosso viés discutindo com pessoas que tenham um viés oposto e cultivar a prontidão em descartar qualquer hipótese que revelou ser inadequada. Mas seguir tal receita simples é algo complexo, pois requer que enfrentemos obstáculos que Russell em seu ensaio divide em três categorias: educação, propaganda e pressão econômica.
A educação, tal como ela é praticada, é um impedimento ao livre-pensamento porque ela não compre suas funções básicas de transmitir conhecimento e de inculcar bons hábitos mentais nas pessoas. Pois não basta ensinar às crianças a ler e a escrever, a falar outras línguas e a fazer operações matemáticas. É preciso ensinar-lhes a adquirir conhecimento ao longo da vida, quando estiverem fora dos bancos escolares e a fazer seus próprios julgamentos. Russell dá um exemplo prático de como fomentar essa proatividade cognitiva, por meio da leitura de jornais. O professor seleciona um acontecimento passado que suscitou polêmica e paixões na época em que ocorreu e apresenta a narrativa dele dada por um jornal, aquela dada por outro jornal de tendência oposta e uma terceira narrativa mais imparcial. Os alunos comparam as versões dos fatos, sopesando as evidências apresentadas pelas diferentes correntes, e chegando assim a uma depuração do que realmente aconteceu sob a premissa de que não podemos concordar plenamente com nenhuma proposição que não temos razão de acreditar ser verdadeira. Essa confrontação de narrativas com diferentes vieses estimularia no aluno um ceticismo que o tornaria imune ao apelo a grandes ideais pelo qual pessoas decentes são levadas a viabilizar os esquemas corruptos de pilantras. Assim, a educação que não dá ferramentas para o aluno adquirir por si mesmo o conhecimento por meio da reflexão não permite a ele pensar livremente e o torna escravo dos donos do poder que querem levá-lo a agir de certa forma, inclusive morrer feliz nos campos de batalha.
Já a propaganda é ofensiva ao livre-pensamento por dois motivos: ela apela a crenças irracionais e não a argumentos sólidos, de modo que possa estimular as pessoas a agir com base na emoção; e ela dá uma vantagem desmedida àqueles que conseguem fazer sua mensagem ser repetida mais vezes, por meio da riqueza ou do poder. Uma mensagem simples, repetida inúmeras vezes, e que tenha como objetivo dar vazão aos instintos e sentimentos do homem, como o medo, o amor, o ódio, a inveja, consolidará nossos preconceitos e vieses, impedindo a prática da reflexão ponderada indispensável para que o livre-pensamento floresça.
Por último, a pressão econômica impede o livre-pensamento porque ela premia com empregos e meios de sustentar-se aqueles que se conformam com a ortodoxia dominante e pune com desemprego e penúria material os recalcitrantes. Russell observa que com a industrialização acelerada haverá uma maior concentração econômica e as corporações tornar-se-ão mais onipresentes, o que lhes dará poder de vida e morte sobre o pool de possíveis trabalhadores.
E qual o risco de não haver livre-pensamento pela educação ruim, pela a propaganda onipresente e pela pressão econômica exercida pelas grandes corporações? O risco é o incentivo à credulidade, isto é, à crença em proposições que não foram submetidas ao teste da verdade proposto por Russell com base na análise das evidências disponíveis. E conforme o trecho escolhido para abrir este artigo, a credulidade é mais presente e mais malévola nos regimes democráticos, já que a educação não reflexiva, fundada na absorção passiva de conhecimentos, e a propaganda tornam mais fácil aos poderosos de plantão imporem sem violência física, mas apenas pelo convencimento, seu modo de ver as coisas, e disfarçarem seu domínio econômico sob as vestes de verdades compartilhadas por todos.
Prezados leitores, em tempos sinistramente interessantes como os que vivemos, de divisões das tribos nas mídias sociais com base nas paixões, o convite de Bertrand Russell ao exercício contínuo do ceticismo e da reflexão como forma de proteção contra a manipulação exercida sobre a população são mais atuais do que nunca. Poderíamos inclusive praticar as recomendações pedagógicas de Russell e lermos artigos na imprensa ocidental descrevendo o terrorismo bárbaro do Hamas e na imprensa árabe, iraniana, chinesa e russa sobre os crimes de guerra do Estado de Israel. Talvez pelo cotejamento das opiniões tão contrárias chegássemos a uma conclusão menos apaixonada do que a que prevalece hoje em dia e leva o mundo ao conflito generalizado. Aliás, o último escrito do filósofo, divulgado em julho de 1970, pouco depois de ele morrer em fevereiro daquele ano, falou sobre a disputa que hoje está mais viva do que nunca: “Nenhum povo em nenhum lugar do mundo aceitaria ser expulso em massa do seu próprio país: como alguém pode exigir que o povo da Palestina aceite uma punição que ninguém mais toleraria?”.