[…]já que a opulência da capital francesa resulta dos defeitos do seu governo e da sua religião. Na ausência de Luís XIV e de seus sucessores, o Louvre permaneceu inacabado mas os milhões que foram esbanjados nas areias de Versalhes e no pântano de Marly não poderiam ser proporcionados pelo estipêndio aprovado pelo Parlamento para um rei britânico. […] Todo ornamento supérfluo é rejeitado pela fria frugalidade dos protestantes, mas a superstição católica, que é sempre a inimiga da razão, é frequentemente a mãe das artes.
Trecho retirado da “Autobiografia” do historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794), autor de “A História do Declínio e Queda do Império Romano”
Estereótipos negativos em particular dão origem a um sentimento de culpa: ninguém se preocuparia muito se pensasse que é improvável que velhinhas com artrose e cabelo lavado de azul o roubasse na rua. São os estereótipos negativos que nos incomodam e fazem com que nossos pensamentos deem voltas. Houve tantos estereótipos negativos que eram falsos, degradantes e cruéis que foram usados como justificativa para injustiças ou barbáries que a própria ideia de criar estereótipos para um grupo de maneira negativa foi desacreditada.
Trecho retirado do livro “Em defesa do preconceito – A necessidade de se ter ideias pré-concebidas, do médico, psiquiatra e escritor inglês Theodore Dalrymple (1949- )
Foi necessário colocar sobre uma peça grande, sobre uns tapetes e lonas todos os relicários e cofres, para reparti-los de maneira ordenada e transferi-los dos cofres de seda em que tinham vindo para os vasos e custódias preciosas, onde todos pudessem vê-los, gozar deles e adorá-los. O Rei subia até ali vindo dos seus aposentos, algumas vezes sozinho, outras vezes acompanhado dos seus filhos. Estando ali, me pedia algumas e ainda muitas vezes (eu tinha então sob meu encargo todos aqueles santos tesouros) que me mostrasse tal ou qual relíquia; quando eu a colocava nas mãos, antes que pudesse me valer de algum tafetá ou lona, o piedosíssimo Rei se inclinava e tirando seu chapéu ou gorro, beijava a relíquia com sua boca e com os olhos, nas minhas próprias mãos e pelo fato de algumas serem pequenas era forçoso também beijá-las mil vezes e creio que com isso queria fazer duas obras santas de um caminho, mostrando não estimar menos as mãos pelas quais se consagrava Jesus Cristo que aqueles ossos […]
Trecho retirado do livro “Como viveu e morreu Felipe II”, escrito pelo frei espanhol José de Siguenza (1544-1606)
Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei algumas das ideias do filósofo escocês David Hume (1711-1776), um dos pais do Iluminismo tanto na sua Grã-Bretanha natal quanto no continente europeu. Além de ser filósofo, Hume aventurou-se no campo da historiografia, escrevendo uma história da Inglaterra. Nesta semana, tratarei de um historiador que leu a “Investigação sobre o Entendimento Humano” e “A História da Inglaterra” e foi fortemente influenciado pelo ceticismo e empirismo de Hume. Trata-se de Edward Gibbon. A influência do filósofo escocês pode ser detectada na Autobiografia que Gibbon escreveu no fim de sua vida, ao narrar sua atitude cambiante em relação à religião.
Aos 16 anos de idade, tendo sido enviado a Oxford para estudar, Gibbon converte-se ao catolicismo, para desespero do seu pai, de quem o futuro historiador era o único filho. Não sendo conveniente deserdar seu único rebento que carregava o mesmo nome, Edward pai resolve mandá-lo para Lausanne, na Suíça, para ser educado por um pastor calvinista. E lá a cura foi conseguida: a doença do catolicismo foi definitivamente superada e Edward Filho passa a achar toda sorte de defeitos na religião dos papas, associando-a uma forma de governo e a uma cultura e mentalidade específicas.
Conforme o trecho que abre este artigo, para Edward Gibbon o catolicismo é a religião de reis absolutistas como Luís XIV, que tinham a seu dispor todo o dinheiro que pudessem arrancar dos súditos para construir obras monumentais, como o Palácio de Versalhes e o castelo de Marly-le-Roi. A religião protestante é a religião daqueles governantes que viviam sob controle do parlamento e, portanto, dependiam financeiramente daquilo que os representantes do povo estavam dispostos a lhes dar. É assim a religião da frugalidade, da sobriedade não muito amiga das artes, porque estas requerem um apego à ornamentação a que só reis todo-poderosos poderiam se dar ao luxo.
E não é só isso, o catolicismo é a religião da superstição, contrária à razão desassombrada de Hume. Afinal, católicos acreditam na transubstanciação, isto é, na transformação do vinho e da hóstia da missa no sangue e no corpo de Jesus Cristo, uma ocorrência que, como diria o filósofo escocês sobre os milagres, é pouco provável que ocorra porque não atestada por um número suficiente de homens que pudesse dar substância à alegação que tal transformação ocorreu. E o que falar do culto aos santos e mártires? A superstição neste caso atinge os píncaros da irracionalidade, como atesta o trecho que abre este artigo, retirado da biografia escrita pelo frei José de Siguenza sobre o rei da Espanha Felipe II (1527-1598).
Ao final do décimo-terceiro capítulo do seu livro, o frei conta como o rei adorava relíquias que nada mais eram do que partes do corpo de santos da Igreja Católica, normalmente ossos que eram colocados em relicários. Felipe II seguia o ritual diário de beijá-las inúmeras vezes, como se aquilo pudesse dar-lhe mais saúde ou torná-lo mais virtuoso. Quem visita o Palácio do Escorial em pleno século XXI poderá ver a coleção de relíquias do rei da Espanha, que quando esteve doente para morrer não as largava nunca, o que não adiantou muito para sua recuperação. Considerando essa adoração macabra e inútil de um dos governantes mais poderosos do mundo no século XVI, Gibbon não tem razão quando diz que o catolicismo é refratário ao pensamento racional e está mais afeito ao irracionalismo e ao absolutismo?
O preconceito que Gibbon adquiriu contra a religião da sua adolescência, à qual passou a associar uma série de más qualidades, respaldou seu ponto de vista de historiador, permitindo-lhe contrapor a visão de mundo dos romanos, donos de um império que durou mais ou menos de 27 a.C. a 1453 d.C., mas que foi solapado pelo cristianismo, a uma visão de mundo baseada em uma religião monoteísta que provou ser refratária a qualquer tentativa de assimilação ao panteísmo então em voga. É razoável supor que se Gibbon não tivesse tido suas ideias negativas em relação ao catolicismo romano, cujas origens remontam aos apóstolos de Jesus no primeiro século da era cristã, ele não teria tido a sensibilidade de apreciar tais diferenças de mentalidade entre romanos e cristãos que lhe permitiu estabelecer as causas da queda de uma civilização que durou quase 1.500 anos.
E, no entanto, conforme explica Theodore Dalrymple no trecho que abre este artigo, atualmente temos um sentimento de culpa em relação a cultivar estereótipos, pelas consequências nefastas que tiveram. No caso de Gibbon, equacionar o catolicismo ao irracionalismo e ao despotismo foi profícuo como ponto de partida para sua narrativa histórica, mas na primeira metade do século XX na Europa as ideais pré-concebidas sobre certos grupos sociais levou à matança indiscriminada dos membros daqueles grupos, sejam eles ciganos, judeus, comunistas, deficientes mentais ou físicos.
O que fazer? Deixar os preconceitos totalmente de lado para que a tragédia da Segunda Guerra Mundial não se repita? Ou tentar fazer como Edward Gibbon fez no século XVIII, e torná-los um modo de apreensão da realidade por meio de certos princípios e valores básicos? Preconceitos para quê em pleno século XXI? Cada um que ache sua resposta.