“[…] você deve esperar encontrar [na corte] contatos sem amizade, inimigos sem ódio, honra sem virtude, aparências salvas e realidades sacrificadas, boas maneiras com comportamento ético ruim; e todos os vícios e virtudes tão disfarçados que quem quer que tenha refletido sobre um ou outro não conheceria nenhum deles quando os tivesse encontrado pela primeira vez na corte.”
Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”
Aprenda a bajular, porque somente os grandes sábios e santos são imunes à bajulação; mas quanto mais ao alto você for, mais delicada e indireta deve ser sua bajulação.
Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”
Uma “característica de um homem bem educado é a de conversar com quem lhe é inferior sem insolência, e conversar com quem lhe é superior com respeito e à vontade.”
Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”
Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre algumas das iniciativas tomadas por Philippe d’Orléans (1674-1723) enquanto foi regente da França de 1715 a 1723, e usei o exemplo de sua vida para dar uma lição de moral, alegando que ele poderia ter feito muito mais pelo país e talvez tivesse contribuído para atenuar o desgaste da Monarquia francesa se tivesse vivido mais. E ele teria vivido mais se tivesse cultivado a virtude da temperança, isto é, se tivesse exercido um melhor controle sobre seus apetites. Afinal, a temperança é a sabedoria relativa à determinação do que é moderado e conveniente em relação aos prazeres do homem, o qual deve sopesar os efeitos benéficos e maléficos a curto e a longo prazo de dar vazão a seus apetites e tomar decisões com base na arte da medida do prazer e da dor que eles lhe causam.
Nesta semana, meu foco não será na virtude, mas nas boas maneiras. Porque a verdade é que no ambiente cultural em que se vivia na Europa no século XVIII, com a proliferação de livre-pensadores e de libertinos que caçoavam da religião e das proibições que ela impunha, e se achavam muito inteligentes e criativos ao atacá-la enquanto instituição e enquanto prática, ficava difícil almejar a um comportamento cristão. Todos os preceitos das igrejas haviam perdido a credibilidade quando das repetidas guerras nos séculos XVI e XVII entre católicos e protestantes. Não era possível a homens do mundo, familiarizados com as descobertas científicas de Newton, com as mais recentes especulações filosóficas de Spinoza e Locke, serem criaturas morais que tomavam a Bíblia como a suprema autoridade para decidirem como se comportar. Na falta de rígidos padrões éticos, um homem de sensibilidade e inteligência inventou as boas maneiras e elaborou um manual dirigido a seu filho, como meio de educação do rebento, que ele esperava exercesse cargos no governo como Ministro ou diplomata.
Este homem foi o 4º Conde de Chesterfield, Philip Dorner Stanhope, que foi membro da Câmara dos Lordes (1726), embaixador da Inglaterra na Holanda (1728) e governador-geral da Irlanda (1745-1746), onde criou escolas, estabeleceu indústrias, deu fim à perseguição aos católicos, acabou com a corrupção no governo e administrou com competência e imparcialidade. Apesar dessas realizações, seu principal legado ao mundo foram suas Cartas, publicadas depois de sua morte. Em que pese elas não terem atingido seu objetivo de formarem seu herdeiro para ser um membro da elite governante, já que o moço morreu antes do pai aos 36 anos, sem ter realizado nada digno de nota, as Cartas são uma coletânea de bons conselhos para quem quisesse ter sucesso em um mundo cujas instituições milenares, como a Igreja e a Monarquia, estavam sendo corroídas.
Conforme o primeiro trecho que abre este artigo, o 4º Conde de Chesterfield tem uma visão equilibradas da Corte: não era nem um antro de homens degenerados e nem povoada por homens abnegados que tratavam da coisa pública com zelo e sacrifício pessoal. Não era preciso ter um comportamento moral ilibado e coerente, afinal o ideal do bom cristão tinha ficado para trás, mas era necessário sobretudo disfarçar seus vícios de modo que eles pudessem passar quase desapercebidos e que as aparências pudessem ser mantidas, para alívio de todos.
O fato é que cada personagem na Corte tratava dos seus interesses da melhor maneira possível, o que muitas vezes significava moderação nas atitudes para conseguir ser bem-sucedido. Era preciso bajular as pessoas que tinham o poder para fazer nomeações, viabilizar contratos com o governo, mas não era de bom tom ser abertamente bajulador, porque isso poderia irritar o objeto dos elogios e torná-lo antipático aos desígnios do bajulador. Da mesma maneira, não era de bom tom tripudiar sobre aqueles que estavam abaixo na escala social, pois isso poderia nutrir o ressentimento e lembrar aos objetos do desprezo como a fortuna era arbitrária e injusta, o que poderia lhes inspirar a desígnios vingativos.
Nesse sentido, os objetivos materiais imediatos tinham predominância sobre ideais de vida e as relações humanas não deveriam ser muito pessoais, calcadas nas emoções, nos valores em comum, o que sempre ofusca o raciocínio: eram relações baseadas nos interesses mútuos e todas as tratativas deveriam relevar as preferências ou antipatias pessoais em prol da obtenção de um acordo sobre um mínimo que fosse conveniente para ambas as partes. Adotando esse comportamento equilibrado, os homens da Corte poderiam satisfazer seus interesses egoístas sendo polidos, discretos e cautelosos no falar e no agir. Evitando excessos de insolência, desrespeito e bajulação, eles poderiam manter relações cordiais tanto com quem estava acima deles quanto como quem estava abaixo deles, viabilizando a consecução dos seus objetivos e em assim fazendo contribuindo para a paz social.
Em suma, boas maneiras eram fundamentais, a despeito das ilusões perdidas em relação ao modo de vida cristão. E tais boas maneiras implicavam também uma atitude serena em relação à religião. Para Chesterfield, criticar abertamente a religião como libertinos e livre-pensadores faziam, fazer troça das suas proposições cientificamente absurdas, era algo vulgar e desrespeitoso. Vulgar porque com a profusão de obras anticlericais e antireligiosas, qualquer indivíduo de pouca inteligência e cultura poderia achar argumentos para lançar diatribes contra a Igreja, a Bíblia e Jesus Cristo. Desrespeitoso porque a religião era, afinal de contas, a garantia da moral. Sem a religião a moral se enfraquecia bastante, tornava-se um ativo desvalorizado. Tanto assim, que já em 1752 Chesterfield, observando na França como as pessoas criticavam livremente o governo e a religião, vislumbrou uma possibilidade cada vez maior de que houvesse uma revolução no país, tamanho era o desprezo mostrado ao Rei e à Igreja Católica.
Prezados leitores, mesmo que a virtude e as boas maneiras não sejam a mesma coisa, o fato é que a falta de uma e de outra leva ao mesmo resultado catastrófico, de erosão da credibilidade das instituições que são o esteio da sociedade. Da mesma maneira que ocorreu com Philippe d’Orléans, cujo curto período no governo foi insuficiente para deixar um legado duradouro de boa governança do Estado para os sucessores de Luís XIV, talvez se mais pessoas da elite tivessem aderido ao manual de boas maneiras do 4º Conde de Chesterfield, os excessos de vulgaridade, desrespeito e arrogância teriam sido evitados e o povo francês não teria se rebelado da maneira violenta que o fez em 1789. Os franceses poderiam ter mantido sua monarquia, domesticando-a por meio da prevalência do Parlamento como na Inglaterra. Se faltam virtudes aos homens, imperfeitos que são, a lição das Carta ao seu Filho é que as boas maneiras são um substituto que pode contribuir para manter a sociedade organizada.