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Glória para quê?

Posted by on 06/09/2023

Boisguillebert foi um dos primeiros a rejeitar a ilusão mercantilista de que os metais preciosos constituíam riqueza por si sós, e que o propósito do comércio é o de acumular ouro. A riqueza, dizia ele, consiste na abundância de produtos e no poder de produzi-los. A riqueza essencial é a terra; o fazendeiro é a base da economia, e sua ruína implica a ruína de todos; em última análise, todas as classes estão unidas por uma comunhão de interesses.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), explicando o plano econômico de Pierre Le Pesant, Senhor de Boisguillebert (1646-1714), para mitigar o caos e a miséria durante o reinado de Luís XIV (1643-1715) na França

 

É a camada mais baixa da população que, pelo seu trabalho e indústria, e suas contribuições ao tesouro real, enriquecem o soberano e seu reino; no entanto, “é essa classe que agora, pelas exigências da guerra e a tributação de suas economias, está reduzida a viver em trapos e em cabanas em ruínas, ao mesmo tempo que suas terras permanecem não cultivadas”, na ausência de seus filhos recrutados para a guerra.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), explicando as propostas de reforma econômica do engenheiro militar Sébastien Le Prestre, senhor de Vauban (1633-1707) para a França de Luís XIV (1638-1715)

As pessoas acostumadas à bajulação consideram ressentimento, amargura ou excesso aquilo que é simplesmente a pura verdade […] Vossa Majestade não ama Deus, Vossa Majestade somente O teme e com um enorme temor. […] Sua única religião consiste de superstições, de observâncias superficiais e insignificantes […] Vossa Majestade ama somente sua glória e seu ganho.

Trecho de uma carta anônima escrita por François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715), arcebispo de Cambrai, ao rei Luís XIV, citada na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

 

    Prezados leitores, na semana passada eu expliquei aqui neste humilde espaço o alerta que o filósofo e matemático Leibniz (1646-1716) fez sobre os voos da mente humana que, livre das absurdas proposições da religião a respeito da realidade objetiva, poderia acabar também deixando de lado os valores éticos ancorados nos mitos religiosos. Leibniz temia a desordem, a violência e a destruição que o homem, submetendo-se somente à sua própria vontade, e não mais à vontade divina, poderia ocasionar. Ele não viveu o suficiente para ver Napoleão empreender guerras na Europa por mais de 20 anos ininterruptamente, mas em sua época pode ver o rei da França, Luíz XIV, atuar da mesma maneira desimpedida, própria dessa nova era de liberdade.

    Luís XIV construiu Versalhes, protegeu artistas como Molière (1622-1673) e Racine (1639-1699), mas ao longo do seu longo reinado de 72 anos ele cultivou a guerra como meio de aumentar o território do país e garantir que a França tivesse fronteiras mais naturais e defensáveis. Em 1672 invadiu a Holanda, em 1688 invadiu a Alemanha, em 1701 apoderou-se de cidades que serviam de defesa para os Países Baixos Espanhóis (que atualmente correspondem mais ou menos à Bélgica). Para montar seus exércitos, foi implacável na tributação dos franceses, não de maneira justa claro, pois os pobres arcavam com a maior parte dos impostos. Além disso, as classes baixas contribuíam com o esforço de guerra pelo recrutamento forçado de soldados e pelo aprovisionamento de víveres para as tropas, e sofriam mais diretamente as consequências do ativismo bélico do rei-Sol. Afinal, a França invadia os países vizinhos, mas estes revidavam, invadindo-a, pilhando-a, matando como os soldados franceses faziam alhures.

    O resultado de anos e anos de campanhas militares foi devastador para o comércio, para a indústria e para a agricultura, pois todos os recursos do país eram canalizados para custear os sonhos gloriosos de Luís XIV de aumentar o território do país. A agricultura foi prejudicada pela falta de mão de obra, recrutada para as guerras, e pela destruição das plantações pelos exércitos invasores. O comércio sofreu com as sanções impostas pelo governo francês à importação de produtos estrangeiros, com a consequente retaliação dos países objeto das sanções, que pagavam na mesma moeda, impondo barreiras alfandegárias. A indústria, por sua vez, viu-se sufocada por regulações que acabavam tendo um efeito confiscatório de punição na forma de multas impostas sobre aqueles que não seguissem as regras, sem que fossem criados estímulos para as pessoas empreenderem livremente.

    Não é de se admirar que a população tivesse diminuído de 23 milhões de pessoas em 1670 para 19 milhões em 1700 devido à obsessão com guerras que causavam fome, pobreza e doenças. E que o Estado estivesse falido: em 1697 a receita total do Tesouro francês foi de 81 milhões de livres e as despesas foram de 219 milhões. Por outro lado, como o livre-pensamento andava solto, para o bem e para o mal, surgiram vários críticos do modo de governar do rei-Sol e propostas para tirar a França da ruína material em que se encontrava no final do século XVII e começo do século XVIII. Como mostram os trechos que abrem este artigo, a receita da redenção do reinado de Luís XIV seria que o rei cuidasse das pessoas e não da conquista de territórios.

    O Marquês de Vauban defendia, com base em números cuidadosamente compilados, que era preciso diminuir a carga de impostos sobre aqueles que carregavam o país nas costas, isto é, os que trabalhavam na agricultura e na indústria. Diminuindo os impostos, haveria um florescimento da atividade econômica que criaria empregos, geraria renda e faria nascer consumidores, estabelecendo um ciclo virtuoso de produção e consumo, que se complementariam. Como o Senhor de Boisguillebert afirmava, não era o acúmulo de metais preciosos que fazia a riqueza de um país, pois se não houvesse produtos agrícolas e manufaturados à disposição, o valor relativo dos metais seria diminuído pela escassez da produção. A economia real, isto é, aquela que gerava riqueza sustentável, era a economia dos produtores e não dos acumuladores de dinheiro.

    Luís XIV acabou não seguindo o conselho de nenhum desses estudiosos que procuraram, à luz da observação do que acontecia no país em termos de destituição do povo, formular soluções que fizessem a França renascer das cinzas de anos a fio em que a organização das atividades girava em torno da guerra. Como afirmou Fénelon em sua carta anônima, o rei era rodeado de bajuladores e, cioso do seu próprio valor, considerava qualquer crítica atentado de lesa-majestade contra sua dignidade. Acrescentando-se à vaidade do rei sua falta de um verdadeiro espírito religioso, de humildade perante uma autoridade maior que a sua, e estava consolidado seu caminho de perseguição da glória a qualquer custo, o que significou principalmente o sangue do povo francês.

    Em seu leito de morte, o rei-Sol deu um conselho ao seu bisneto, o futuro Luís XV: “não me imite no gosto que tive pelas grandes obras e pela guerra”. Mas a nós, que temos o privilégio da visão retrospectiva, fica claro que os sonhos de grandeza do rei, que amava a si mesmo mais do que tudo, lançaram os germes da Revolução Francesa, que causaria ainda mais morte e destruição.  Prezados leitores, fica para nós, no século XXI, uma pergunta: glória para quê? Para a satisfação dos anseios narcisísticos de um tirano, como o rei-Sol, ou para a consecução de algo transcendente ao indivíduo como Leibniz e Fénelon propunham? O que é possível ou provável atualmente? Observem os líderes políticos atuais e julguem vocês mesmos.

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