Pode ser dito que Epicuro e Spinoza, por exemplo, levaram uma vida absolutamente exemplar. Mas essas razões cessam de existir frequentemente nos seus discípulos ou imitadores, os quais, acreditando-se liberados do medo inconveniente de uma Providência que vê tudo e de um futuro ameaçador, dão rédea solta às suas paixões selvagens e voltam sua mente à sedução e à corrupção de outros[…]
Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), citando o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)
“Eu sempre começo como um filósofo,” ele disse, “mas sempre acabo como um teólogo” – isto é, ele achava que a filosofia deixava de cumprir seu objetivo se não levasse à virtude e à piedade.
Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), comentando sobre o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)
A opinião da maioria sobre o conhecimento é mais ou menos a seguinte: que ele não é forte, nem hegemônico, nem soberano. Tampouco ela pensa que é a mesma coisa que comanda o homem, mas que, frequentemente, mesmo em posse do conhecimento, não é o conhecimento quem o comanda, mas alguma outra coisa, ora a ira, ora o prazer, ora a dor, às vezes o amor, muitas vezes o medo. Ela praticamente considera o conhecimento como se fosse um escravo, arrastado por aí por tudo o mais. Porventura, a sua opinião se coaduna com essa, ou b, você crê que o conhecimento é belo e capaz de comandar o homem, e que, se alguém souber o que é bom e o que é mau, não será dominado por nenhuma outra coisa a ponto de praticar algo diferente do que o conhecimento prescrever, sendo a inteligência suficiente para socorrer o homem?
Trecho da tradução de Daniel R. N. Lopes do diálogo Protágoras de Platão (427 a.C.-347 a.C.) em que o personagem Sócrates fala
Prezados leitores, eu venho aqui explicando uma parte das ideias de filósofos e pensadores como Anthony Collins (1676-1729), Baruch Spinoza (1632-1677), Anthony Ashley Cooper, o terceiro Conde de Shaftesbury (1671-1713) e o ainda vivo Sam Harris (1967-, todos deliberada ou inadvertidamente minando as bases da religião no Ocidente. A Bíblia não pode ser vista como fonte de conhecimentos factuais, no máximo como um conjunto de histórias míticas com algum valor moral, para quem está inserido na cultura judaico-cristã. O homem não tem livre arbítrio pelo fato de a consciência ser um dos processos que se desenrolam na mente do homem e portanto, nossas escolhas morais não dependem exclusivamente de nós e da nossa relação especial com Deus, mas do contexto em que atuamos como indivíduos. Os conceitos de bem e mal não são impostos por uma divindade que dita o que deve e o que não deve ser feito, mas são fruto da experiência do homem tentando sobreviver na Terra e organizando-se em grupos sociais para melhor enfrentar os concorrentes na luta por recursos escassos. Todas essas ideias saíram da cabeça dos pensadores que no século XVII começaram a pensar livres das amarras da religião cristã e continuam agindo da mesma forma no século XXI. Nesta semana, meu objetivo será estabelecer um contraponto a esse livre-pensar triunfante, nas figuras de Leibniz e de Sócrates (470 a.C.- 399 d.C).
Não que Leibniz fosse avesso ao exercício da reflexão. Ao contrário, o homem era um polímata e o rei da Prússia, Frederico o Grande, definiu-o como uma academia nele mesmo. Inventou o cálculo infinitesimal na mesma época que Isaac Newton, mas publicou seus achados antes e ficou com os louros da criação, mesmo porque sua notação era melhor. Deu conselhos infrutíferos ao rei da França Luís XIV que lançasse expedições militares para conquistar o Egito e não invadisse os principados alemães. Talvez se o rei-Sol tivesse escutado a França não teria ido à falência por suas guerras europeias, e teria se transformado na potência imperial em que se transformou a Inglaterra. O que é importante para os fins deste humilde artigo é que ele refletiu sobre o conflito entre a religião e a racionalidade que explodia na Europa com a física newtoniana e com a concepção abstrata de Spinoza de um Deus indiferente que estava presente em tudo como a própria substância das leis que regiam o funcionamento da Natureza.
Conforme os trechos que abrem este artigo, Leibniz preocupava-se com as consequências das seguidas derrotas que a religião sofria para a ciência, que descobria a ordem do Universo sem que fosse necessário pressupor a existência de nenhuma entidade metafísica. O livre-pensar, caso se tornasse prática corriqueira, trazia sérios riscos à ordem e à paz social. Uma coisa era que seres íntegros como Epicuro e Spinoza, seres dotados de grande capacidade intelectual, mas aliada a uma alta consciência moral, filosofassem fora de uma estrutura teológica. Eles não causariam mal nenhum, porque neles o conhecimento era um meio de chegar à verdade, mas também à virtude: conhecer para ser um ser humano melhor, adaptado à vida em sociedade e capaz de contribuir para ela.
Outra coisa muito diferente era que indivíduos que não cultivavam a virtude, mas imitavam os livre-pensadores e assim se desfaziam das restrições comportamentais impostas pela religião, fizessem uso da sua liberdade recém-conquistada para atuar de acordo com suas paixões e ambições: afinal, se não era mais crível que os maus iriam para o inferno e os bons para o céu, para que preocupar-se em agir moralmente se tal agir me prejudicaria individualmente? Nesse sentido, Leibniz via com maus olhos as disputas ideológicas entre católicos e protestantes: elas não levavam ao bem nem à piedade, ao contrário tiravam credibilidade da religião, fomentavam a discórdia entre as pessoas e por isso minavam a sociedade, incitando à violência.
Em suma, para Leibniz filosofar era saudável se os voos da mente humana não levassem o indivíduo para longe demais da virtude e do senso do divino, de uma autoridade transcendente ao qual todos deveriam se submeter. Esse enfoque em colocar o conhecimento dentro de limites éticos já era uma preocupação do Sócrates retratado por Platão no diálogo Protágoras. O conhecimento deve ser o senhor do homem, deve ser a fundação na qual seus atos são praticados, ele não pode vir a reboque das paixões humanas, ser um mero espectador passivo delas ou lhes servir de disfarce, como tantas vezes acontecia nos debates públicos em Atenas, quando os argumentos eram elaborados não em busca da verdade, mas do convencimento da plateia.
Prezados leitores, em seu capítulo dedicado a Leibniz, Will e Ariel Durant apontam como ele exemplificou uma sapiência em relação aos limites e os perigos da razão e da liberdade, em contraposição à idolatria da razão que foi a pedra de toque do Iluminismo no século XVIII, em seu afã de destruir todas as bases da religião, para que o homem, livre das falsas superstições, dos rituais anacrônicos, se dedicasse a entender os mecanismos do universo e assim obtivesse o conhecimento para tornar a vida de todos melhor. No final das contas, a pergunta que Leibniz se colocou, continua válida, considerando que o mesmo conhecimento que nos deu o progresso material e que tornou a vida de qualquer humilde gari no século XXI mais confortável e mais segura do que a vida do rei Luís XIV ou do próprio Leibniz no século XVII, também nos deu as armas nucleares que pesam sobre o nosso futuro. Conhecimento para quê? Para levar uma vida virtuosa ou para concretizar nossas ambições? A resposta pode ser pensada livremente.