[…] a virtude consiste em uma hexis, em uma espécie de disposição que se adquire no processo de formação intelectual e moral do indivíduo. […] difícil é adquirir a virtude, mas, uma vez em posse dela, é fácil conservá-la , pois se trata de uma condição interna estável conquistada com esforço pelo indivíduo. […] o desenvolvimento da filosofia moral internaliza a concepção de areté (virtude), em oposição a uma visão arcaica, segundo a qual acidentes externos incidem diretamente sobre a condição de um agente enquanto um indivíduo “bom” ou “mau”.
Trecho do ensaio “A incursão de Sócrates na makrologia”, escrito por Daniel R. N. Lopes para sua tradução do diálogo Protágoras de Platão (427 a.C.-347 a.C.)
Ele considerava abjeto e covarde ser virtuoso por causa da esperança do paraíso ou do medo do inferno; a virtude é real somente se praticada por ela mesma.
Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o filósofo inglês Anthony Ashley Cooper, o terceiro Conde de Shaftesbury (1671-1713)
Se Deus não existe, por que achar que temos obrigações morais uns com os outros, quem ou o que nos impõem obrigações morais?
Trecho falado por William Lane Craig (1949-) teólogo americano em um debate com Sam Harris (1967-) filósofo e neurocientista americano
[…] as boas maneiras e a moral exigiam o apoio público à igreja Cristã. Se a filosofia poderia retirar das pessoas a fé na justiça divina por trás das injustiças e dos sofrimentos aparentes da vida, o que ela poderia oferecer para sustentar as esperanças e a coragem dos homens?
Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o filósofo inglês John Locke (1632-1704)
Prezados leitores, na semana passada citei Anthony Collins que, no final do século XVII e início do século XVIII, propôs o livre-pensamento para analisar qualquer coisa, inclusive a religião. Essa interferência da razão abriu uma fresta que se transformou em um grande pórtico por onde entraram questionamentos aos dogmas religiosos que acabaram por minar a credibilidade intelectual da fé cristã. Nesta semana, tratarei de um dos pontos da disputa entre crentes e não crentes que é a questão da moralidade. Como explicar a origem da moralidade e como impô-la para o bem da convivência social? Meu objetivo será o de explorar a pertinência das preocupações éticas para a justificação da necessidade ou não da religião.
A esse respeito, há a princípio duas posições possíveis. De um lado, pessoas como William Lane Craig que, conforme o trecho que abre este artigo, consideram que o homem consegue ser um ser ético porque ele foi criado à imagem e semelhança de Deus, que lhe impôs o que é certo e o que é errado. Sem tal imposição de uma autoridade exterior, o homem não saberia o que é bom e o que é mal e não teria motivo para agir de maneira ética com seus pares porque ninguém o obrigaria a sacrificar seus interesses individuais em prol do coletivo. De outro lado, há filósofos como Anthony Ashley Cooper, que era considerado neoplatonista, pois considerava que o homem tem um senso moral natural. Nesse sentido, a única verdadeira virtude não é aquela imposta pelo medo das punições eternas do inferno ou pela esperança no gozo das benesses do paraíso. É aquela que é interna ao homem, e por ser assim é muito mais perene do que qualquer ordem imposta por um Deus juiz.
Considerando as ideias de Sócrates sobre a virtude expostas no diálogo Protágoras, fica claro porque o terceiro Conde de Shaftesbury foi considerado como um partidário da reafirmação das concepções platônicas. Conforme o trecho que abre este artigo, para Sócrates o que fazia um homem bom ou mal não eram acontecimentos externos, que determinavam o sucesso ou insucesso das suas ações. A virtude era um hábito adquirido pela experiência acumulada e pelo esforço do homem que aprendia a praticar atos bons e uma vez introjetada essa prática cotidiana, o homem acabava internalizando a virtude depois de ter chegado ao conhecimento sobre como agir de maneira virtuosa.
Sob essa perspectiva, o que determinava a moralidade de um ato não era o quanto ele trazia de prosperidade material, de conquista de poder, de glórias, do apoio das pessoas, mas o quanto ele revelava em si o conhecimento do verdadeiro bem. Para Sócrates, nem tudo o que é bem-sucedido no mundo é o certo e o sucesso no mundo material não é indicativo da moralidade do ato.
Se a verdadeira virtude é internalizada como hábito humano, para quê externalizá-la em figuras míticas punitivas, em narrativas sobre o céu e o inferno que recompensa os justos e pune os injustos? Essa noção de ética intrínseca ao homem, como ser que busca o que é verdadeiro e o que é bom será ressignificada por cientistas como Sam Harris, que debateu com William Lane Craig, à luz da teoria da evolução. O ser humano é um primata que se desenvolveu ao longo de milhares de anos e uma das chaves da sua sobrevivência, apesar das suas limitações físicas comparativamente a outros animais com o quais conviveu e competiu por comida, foi justamente sua capacidade de organizar-se em sociedade para juntar esforços contra os inimigos comuns. E a organização social exigiu regras de convivência sobre o que fazer e o que não fazer de modo que ficar juntos fosse benéfico para todos, isto é, garantisse a possibilidade de sobrevivência e da reprodução ao menos da maioria dos membros do grupo.
Assim, para pensadores como Sam Harris, não é preciso recorrermos à religião para explicarmos a moralidade humana, basta analisarmos o efeito das pressões da seleção natural sobre o cérebro humano. O homo sapiens é capaz de ser virtuoso não porque Deus manda, mas porque tal característica revelou-se uma vantagem comparativa na luta por um lugar ao Sol no planeta Terra. Nenhuma explicação sobrenatural é necessária, basta o cotejamento das evidências e a aplicação da razão a elas, como ensinava Anthony Collins quase 400 anos antes de Harris e dos seus pares ateus, como o biólogo Richard Dawkins (1941-) e o jornalista já morto Christopher Hitchens (1949-2011).
E no entanto, é preciso reconhecermos que há uma terceira via possível, entre os que defendem a religião, como fundamento da vida do homem, e os que a rejeitam como desnecessária e absurda do ponto de vista racional. Conforme o trecho que abre este artigo, o filósofo John Locke tinha suas dúvidas filosóficas sobre as proposições da Bíblia, muitas das quais não se sustentavam em face da aplicação das regras do livre-pensamento. Mas, mesmo assim, por razões pragmáticas, John Locke considerava que a religião deveria ser o esteio da vida social, porque a narrativa moral da punição dos injustos e da recompensa aos justos no dia do Juízo Final redimia as injustiças e os sofrimentos aos olhos daqueles que eram suas vítimas principais, isto é, os pobres. A religião era necessária para dar conforto espiritual àqueles que mesmo que agissem virtuosamente seriam malsucedidos na maior parte das vezes porque estavam no ponto mais baixo da escala social. Sem tal conforto, os pobres se revoltariam com sua falta de bens materiais, de poder e de glória. Para o sensato John Locke, a religião poderia não fazer sentido como conjunto de afirmações sobre o mundo exterior objeto das nossas percepções, mas era necessária para a manutenção da coesão e a viabilização da vida em sociedade.
Prezados leitores, será que a fartura material inédita de que gozamos em pleno século XXI torna a religião cada vez mais irrelevante? Ou ela é cada vez mais relevante em um mundo disperso que carece de grandes narrativas que deem significado à existência? Céu e inferno para quê atualmente? Cada um que ache uma resposta.