A política petrina era converter o império russo de um estado universal russo ortodoxo cristão num dos estados paroquiais do moderno mundo ocidental, no qual o povo russo teria seu lugar como uma das muitas nações ocidentais ou ocidentalizadas.
Trecho de “Um Estudo da História”, do historiador inglês Arnold Toynbee (1889-1975), sobre Pedro o Grande, que foi tzar da Rússia de 1682 a 1725
Pedro havia herdado o poder absoluto, tomava isso como certo e nunca duvidou da sua necessidade. O governo pela duma dos boyars restauraria o separatismo feudal e o caos e a estagnação da nação; o governo por uma assembleia democrática era impossível em um país ainda mental e moralmente primitivo; Pedro concordava com Cromwell e Luís XIV que somente a concentração da autoridade e da responsabilidade poderia organizar a heterogeneidade humana em um estado forte o suficiente para controlar as paixões do povo e repelir os ataques de inimigos sedentos de territórios.
Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre Pedro, o Grande (1672-1725)
Prezados leitores, nesta semana, nos dias 11 e 12 de julho, ocorre a reunião dos países da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que dará as boas-vindas ao mais recente membro do clube, a Suécia. No atual contexto geopolítico internacional, com a guerra na Ucrânia sem a mínima perspectiva de terminar, essa adesão da Suécia ao bloco militar ocidental é carregada de simbolismos para quem tem algum conhecimento de história. Meu objetivo nesta semana será explicar essas repercussões no passado e no presente, dando aos meus leitores algumas informações sobre as relações da Rússia com a Suécia, que remontam a Pedro, o Grande.
Para quem já ouviu falar de Pedro I da Rússia, um homem com mais de dois metros de altura, seu nome está associado à cidade que ele fez construir a partir de 1703 à beira do rio Neva, São Petersburgo, a cerca de 40 quilômetros do mar, em um terreno pantanoso e tendo como modelo Amsterdã, que Pedro conhecera em uma de suas três viagens ao Ocidente. Ora, o tzar russo garantiu que a cidade realmente fosse erguida e se mantivesse por conta de sua vitória na Batalha de Poltava em 1709, contra o rei sueco Carlos XII, que invadira a Ucrânia e que acabou derrotado pelo exército russo, levando a Rússia a conquistar os principados do Báltico e toda a Ucrânia.
E assim São Petersburgo começou a tomar forma, a princípio como um porto, mas depois da vitória em Poltava como a capital do império russo. E o sonho de Pedro se transformou em realidade no estilo autocrático descrito por Durant no trecho que abre este humilde artigo. Pedro exerceu o poder absoluto para erguer a nova capital não poupando recursos humanos e materiais, independentemente do custo em termos de vidas perdidas. De acordo com o historiador americano, em 1708 40.000 homens, incluindo prisioneiros de guerra suecos, foram enviados para os trabalhos de construção ao pântano cortado pelo vento e escurecido pela falta de luz solar ao longo de vários meses por ano; em 1709, mais 40.000; em 1711 46.000; em 1713 40.000 trabalhadores adicionais, que ganhavam meio rublo por mês e mendigavam e roubavam nas ruas para complementar os módicos rendimentos. Não havendo carrinhos de mão, essas pobres criaturas, expostas ao frio, à fome e às doenças, tinham que carregar os materiais nos seus casacos levantados acima da cabeça. Então, quem quer que visite São Petersburgo deve saber que a cidade tem como fundação mais sólida os ossos dos milhares de trabalhadores que foram sacrificados no altar dos planos de Pedro, o Grande para a Rússia.
E conforme explica Arnold Toynbee no trecho que abre este artigo, o objetivo do tzar de todas as Rússias foi dar uma resposta ao desafio da Questão Ocidental, isto é, à superioridade técnica, militar e material dos países ocidentais que no início do século XVIII já se mostrava com nitidez. Era preciso achar meios de criar não só uma cidade portuária para estimular o comércio, uma “janela para o Ocidente”, como ela foi designada, mas criar indústrias que produzissem artigos que pudessem ser comercializados, formar gente capacitada que pudesse gerir essas indústrias, construir navios que pudessem usar o porto de São Petersburgo e transportar mercadorias para os países ocidentais pelo Mar Báltico. Pedro tentou tudo isso para empurrar a Rússia, custasse o que custasse, rumo à modernidade ocidental. Fracassou na questão da industrialização e da criação de uma Marinha digna do nome, mas de qualquer forma estabeleceu um exército permanente que protegerias as conquistas militares, e lançou a semente da incorporação das conquistas da civilização ocidental por meio da cidade que leva seu nome.
Essa pequena história de como São Petersburgo surgiu da chamada Grande Guerra do Norte que durou de 1700 a 1721 permite-nos entender melhor o que acontece hoje no século XXI, em que a Suécia abandona sua tradicional neutralidade para se unir ao bloco militar ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos. Se a derrota da Suécia em Poltava marcou a abertura da Rússia para o Ocidente, essa reunião da OTAN de boas-vindas ao seu novo membro será o símbolo do corte total dos laços que ligam a Rússia à Europa?
Nesse sentido, outras questões se colocam. Será que Vladimir Putin terá o mesmo papel que Pedro, o Grande teve no século XVIII, mas de maneira invertida? Será que assim como Pedro não teve pejo de sacrificar milhares de vidas humanas para abrir a janela para o Ocidente, ao final da Guerra na Ucrânia, que um dia terminará sem dúvida, Putin, pela decisão tomada em fevereiro de 2022, terá sacrificado milhares de vidas para fechar as portas ao Ocidente e voltar as relações do seu país primordialmente para a Ásia? E à luz das lições de Platão que vimos examinando aqui neste meu humilde espaço sobre a natureza da liderança política, as ações dos dois líderes russos, o do século XVIII e o do século XXI, atenderiam aos critérios platônicos sobre a necessidade de cultivar a virtude dos cidadãos e de domar suas paixões para colocá-los no caminho da racionalidade? Será que a decisão de num caso abrir uma janela para o Ocidente fundando uma cidade e no outro de fechar tal janela totalmente pela invasão de um país vizinho foram decisões de homens visionários, sabedores do melhor caminho pelo qual conduzir o povo? Ou tanto Pedro quanto Vladimir são simplesmente tiranos que impuseram sua vontade ao país sem se importarem com o sofrimento material e espiritual infligido às pessoas?
Prezados leitores, como sempre não trago respostas às perguntas que coloco, mas uma coisa é certa: para o bem e para o mal, sem São Petersburgo e a ocidentalização a fórceps que ela representou, a Rússia não teria nos brindado com Tolstói, com Dostoiévski, com Turguêniev, Gógol, para mencionar apenas alguns escritores (meus conhecidos) que fizeram contribuições seminais à civilização cultivadas no mundo inteiro. Esperemos que o legado cultural do fechamento da janela para o Ocidente de Putin fique à altura daquele ensejado por Pedro, o Grande.