[…] o homem que pretende ter uma vida correta deve permitir que seus próprios apetites dilatem ao máximo e não refreá-los, e, uma vez supradilatados, ser suficiente para servir-lhes com coragem e inteligência, e satisfazer o apetite sempre que lhe advier. Mas isso, julgo eu, é impossível à massa: ela, assim, vitupera tais homens por vergonha, para encobrir a sua própria impotência, e afirma que é vergonhosa a intemperança, como eu dizia antes, e escraviza os melhores homens por natureza; ela própria, incapaz de prover a satisfação de seus prazeres, louva a temperança e a justiça por falta de hombridade.
Trecho de fala do personagem Cálicles em seu diálogo com Sócrates em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)
Quem quer que prefira sua própria glória aos sentimentos de humanidade é um monstro de orgulho e não um homem; ele só conquistará vanglória, porque a verdadeira gloria é encontrada somente na moderação e na bondade… Os homens não devem pensar bem dele, já que ele os menosprezou tanto, derramando o sangue deles profusamente por uma vaidade brutal.
Trecho da obra As Aventuras de Telêmaco, filho de Ulisses, do teólogo e escritor francês François de Fénelon (1651-1715), citado na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)
Eu atribuo a fake news de ”rebelião armada” às falhas de Putin. Ele deixou de tratar do conflito latente entre Prigozhin e os generais, apresentando aos soldados e ao país uma guerra sem fim que desmoralizou o povo russo. Se a Rússia não consegue derrotar a patética Ucrânia, como ela pode fazer frente ao Ocidente?
Trecho do artigo intitulado “Putin dá-se um tiro na cabeça”, do economista americano Paul Craig Roberts, sobre a rebelião do grupo Wagner, no último fim de semana, sob a liderança de Yevgeny Prigozhin, que ameaçou uma marcha até Moscou
Prezados leitores, na semana passada eu citei aqui neste meu humilde espaço Arquelau, o tirano da Macedônia que Polo, o interlocutor de Sócrates, no diálogo Górgias, admirava por ser um sujeito que exerceu o poder do modo como bem entendeu durante 14 anos. O outro personagem que nutre admiração por líderes como Arquelau é Cálicles, com quem Sócrates interage posteriormente na obra. Nesta semana explorarei a caracterização positiva que Cálicles faz desse tipo de político, de modo a contrapô-la a uma caracterização negativa do tirano feita por François Fénelon. Meu objetivo é lançar luz sobre a rebelião armada ocorrida no sábado dia 24 de junho, na qual cerca de 4.000 soldados do grupo mercenário Wagner, responsável pelas operações militares russas na Ucrânia, decidiram rumar a Moscou para algum tipo de protesto que não sabemos o que foi. Terá sido uma contestação ao modo como Vladimir Putin, o presidente russo, tem conduzido a guerra iniciada em fevereiro de 2022 e que se arrasta há mais de ano sem sinal de conclusão à vista, como considera Paul Craig Roberts?
Conforme o trecho que abre este artigo, para Cálicles a vida a ser vivida por um verdadeiro homem é feita de coragem e inteligência. Coragem para dar vazão a seus apetites, a suas paixões da maneira mais intensa possível, e inteligência para saber fazê-lo no momento e na hora certos. A temperança, isto é, o autocontrole, não é uma virtude, pelo fato de ela advir da covardia e da incapacidade de atuar na sociedade, de agir de maneira destemida de modo a obter aquilo que se deseja.
Nesse sentido, Cálicles faz uma distinção entre os líderes e as massas. Os líderes conseguem concretizar suas ambições por não terem medo e por saberem influenciar as pessoas, obtendo delas a satisfação dos seus interesses. As massas, ao contrário, covardes e incapazes por natureza, procuram impor limitações aos líderes por meio de leis que lhes coíbam a capacidade de atuar de acordo com sua própria natureza superior. Para Cálicles, os homens corajosos e inteligentes têm um direito natural a dominar e a obter mais posses do que os homens inferiores, que nasceram para se submeter ao líder, porque têm medo e são estúpidos. A verdadeira justiça, isto é, aquela que mais se adequa à natureza dos homens, é a justiça do mais forte.
Temos então, de acordo com a visão de Polo e de Cálicles, uma visão do tirano, exemplificado por Arquelau, como um homem realizado, porque conseguiu aquilo que almejava, dando vazão a todos os seus apetites, de poder, de glória, de riquezas. Ocorre que, conforme Platão conta no diálogo Alcibíades Segundo, o namorado de Arquelau assassinou-o para assumir o poder em seu lugar, e depois de três ou quatro dias como tirano, foi ele mesmo trucidado por outros homens que contra ele conspiraram. Dessa forma, a força que sempre se impusera, acabou sendo destruída por outra força igualmente arbitrária, que por sua vez foi suplantada por outra força, em um ciclo ininterrupto de violência.
Considerando o final infeliz de Arquelau, apesar das previsões otimistas de um Cálicles ou um Polo sobre a vida bem-aventurada dos tiranos, é pertinente lembrarmo-nos das lições de um pensador francês do século XVII, François Fénelon, imbuído do espírito do cristianismo de que é melhor cultivar o amor do que a guerra. Conforme o trecho que abre este artigo, o rei que persegue a glória fazendo guerras e derramando o sangue dos seus súditos é um mal líder, pois a moderação e o controle das suas paixões são as verdadeiras virtudes. Agir de maneira voluntariosa perseguindo inimigos internos e externos é sintoma de uma vaidade condenável, uma falha no caráter do líder que deve ser condenada e coibida.
É neste ponto que retomo a pergunta feita acima, considerando as diferentes concepções de liderança de Cálicles e de Fénelon. Será que esse episódio ocorrido no último fim de semana na Rússia é um sinal de fraqueza do presidente russo no sentido dado por Cálicles à fraqueza? Será que ele está sendo contestado por ter mostrado falta de capacidade na concretização de objetivos militares e políticos tangíveis para o povo russo? Afinal, não se vislumbra um fim à guerra e centenas de milhares de pessoas já morreram sem que a Ucrânia deixe de continuar lutando e sem que os Estados Unidos e seus aliados deixem de fornecer armas. A incorporação de Luhansk e Donetsk, na região de Donbass, ao território da Rússia, segue contestada internacionalmente, para não falar da península da Crimeia. Fraco e incompetente, talvez seja essa a visão de Yevgeny Prigozhin sobre Vladimir Putin: o sangue dos soldados do grupo Wagner foi derramado em vão até agora, porque a Ucrânia não capitulou e não dá sinais de que vá fazê-lo.
Talvez o sr. Prigozhin queira que Putin seja mais voluntarioso e eficaz e use de todos os meios bélicos necessários para arrasar a Ucrânia de vez, de sorte que finalmente tenhamos uma liderança à altura dos desafios e que merece dominar as massas. Por outro lado, será que o povo russo, que tem laços linguísticos, históricos, culturais e de sangue com o povo ucraniano está satisfeito com essa matança sem fim à vista? A flor da juventude ucraniana será toda sacrificada em prol de uma eventual vitória russa? Isso não deixará um peso na consciência dos russos por um longo período?
Prezados leitores, a depender da visão que se tem de um líder, se aquela esposada por Cálicles, ou aquela esposada por Fénelon, podemos avaliar as ações de Putin como não suficientemente vigorosas para a consecução do objetivo da vitória russa, ou demasiadamente cruéis e vãs, em busca de uma glória militar para um país que quase se desintegrou nos anos 90 e que ainda vive o rescaldo da perda do status de superpotência. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e esperemos que qualquer que seja o modelo de liderança que Putin almeje ele não termine como o rei Arquelau, porque uma guerra civil em um país com armas nucleares é um grande perigo para o mundo todo.