Isso coloca em xeque a visão otimista de Sócrates com relação à onipotência da razão, expressa pela máxima moral de que o conhecimento é suficiente para a virtude (referida pela crítica platônica como “paradoxo socrático”): bastaria, a princípio, a correção nas opiniões do interlocutor, uma vez contraditórias, para que ele passasse a agir bem, e seria essa a função positiva do elenchos, que justificaria os meios empregados por Sócrates para demonstrar ao interlocutor a sua ignorância e impeli-lo, assim, à investigação filosófica.
Trecho retirado do ensaio “A Tragicidade do Discurso Socrático”, escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução para sua tradução de “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)
Ele detestava o excesso mesmo na virtude. Ele admirava o honnête home, o homem sensato do mundo, que seguia seu caminho na vida com moderação sã em meio aos absurdos que competiam entre si, ajustando a si mesmo sem estardalhaço às fraquezas do ser humano.
Trecho retirado do livro “A Era de Luís XIV”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) e de sua esposa Ariel Durant (1898-1981) sobre Jean Baptiste Poquelin, conhecido como Molière (1622-1673)
A bem da verdade, Lula não é o primeiro presidente a ter de se submeter aos humores e à voracidade de parlamentares oportunistas, que sentem o cheiro do sangue que governos fracos jorram na água. Mas poderia ser o último, se assim realmente quisesse. Não parece ser o caso.
Trecho retirado do editorial ‘Parlamentarismo sem freios’, publicado no jornal o Estado de São Paulo em 4 de junho, sobre a falência do semipresidencialismo que hoje vige no país
Prezados leitores, na semana passada eu citei um trecho da peça de Molière em que o pilantra Tartufo tenta persuadir a mulher do seu melhor amigo a ir para a cama com ele. Tartufo se tornou ao longo dos séculos um símbolo tão poderoso da hipocrisia, isto é, da diferença entre o que se prega e o que se faz, que a língua francesa tem um substantivo, “tartuferie” que denota a dissimulação, a duplicidade, a insinceridade própria dos hipócritas. Tartufo é tão perfeito na sua hipocrisia que ele se vale das suas faculdades mentais para encontrar razões verossimilhantes o suficiente para convencer a pessoa de chafurdar no vício pensando que está agindo corretamente.
Esse uso adulador da razão foi denunciado por Sócrates nos diálogos escritos por Platão em que ele figura como personagem, conforme já expliquei em “Sócrates Reloaded”. Nesta semana meu objetivo será o de explorar os limites da busca do filósofo pela virtude por meio da razão, quando o interlocutor de Sócrates nega-se a interagir com ele. Perscrutando esses limites, tentarei investigar os limites da nossa própria democracia brasileira, curvada atualmente sob o peso desse semipresidencialismo em que o Congresso Nacional tem cada vez mais poderes e cada vez menos responsabilidades e o Executivo tem cada vez mais responsabilidades e cada vez menos poderes.
Conforme o trecho que abre este artigo, Sócrates procurava, em seus diálogos, levar seus interlocutores pela via correta do bem pensar. Para isso ele se valia do processo do elenchos, ou refutação. No caso concreto do “Górgias”, Sócrates conversa com Cálicles, que propõe a ideia de que o aprazível e o bom são a mesma coisa. Para mostrar o absurdo de tal proposição, Sócrates convida o interlocutor a participar do seu jogo, qual seja: definir os termos de maneira precisa (o que é uma coisa boa?, o que é uma coisa aprazível?) e uma vez definidos os termos, estabelecem-se as premissas do argumento que será desenvolvido pelo filósofo.
No entanto, para que esse caminho rumo à verdade, isto é, rumo às proposições sem contradições, seja percorrido, é preciso que Sócrates e Cálicles consintam com tais premissas. Sem tal consentimento a verdade não se completa, porque ela depende da percepção pelos participantes de que suas afirmações anteriores estavam eivadas de contradições internas, oriundas da má definição dos termos. Se o interlocutor se recusa a perceber isso, se ele não se deixa persuadir, o elenchos falha em atingir o objetivo de refutar as ideias erradas do interlocutor do filósofo e assim aquele persiste no vício, porque para Sócrates bastava que o homem se livrasse da sua ignorância utilizando sua razão para começar a agir de maneira ética.
E é exatamente isso que ocorre no diálogo Górgias entre Sócrates e Cálicles: este se recusa a participar da investigação filosófica proposta por Sócrates, obstinando na opinião de que as coisas que dão prazer são boas. Será que faltava a Cálicles poderes mentais de perceber a necessidade lógica dos argumentos de Sócrates? Será que a mente dele não era brilhante o suficiente? Ou será que Cálicles mostrou-se impermeável aos argumentos de Sócrates porque não simpatizava com o filósofo, com sua recusa em participar do processo político de Atenas? A atitude respeitosa de Sócrates em relação a Cálicles ao longo do diálogo mostra que o filósofo não o via como um ser estúpido, mas simplesmente recalcitrante.
Nesse ponto revelam-se os limites da busca racional de Sócrates pela virtude. Se Cálicles não se deixa persuadir por argumentos lógicos que mostram a contradição das suas afirmações, isso significa que sua razão não está sempre a serviço da busca da verdade, tal como concebida pelo filósofo. Tal como Tartufo fazia para lograr seus intentos libidinosos, Cálicles usa suas faculdades mentais para atingir objetivos que são muito diferentes daqueles ideais ético-racionais vislumbrados pelo filósofo. Cálicles quer usar seu intelecto para relacionar-se com seus concidadãos, para convencê-los a agir de determinada forma, não para fazê-los trilhar o caminho de um bem que é demasiadamente individual e apartado da vida da pólis.
A visão mais pragmática de Cálicles, de usar a razão para atuar no mundo, em contraposição à visão idealista de Sócrates de depurar a razão para, imbuído do conhecimento, fazer o que é bom e justo, encaixa-se na visão do honnête homme de Molière, o criador de Tartufo, citada no trecho que abre este artigo. Essa insistência de Sócrates em buscar o ideal, ao custo de isolar-se das atividades cívicas para evitar a corrupção da razão pelas necessidades da persuasão, acaba sendo um absurdo e o melhor que o homem sensato tem a fazer é evitar os radicalismos: não procurar nem a virtude perfeita, que é impossível, e nem o excesso de vícios de um Tartufo, que com sua hipocrisia e busca do interesse próprio causa tanto mal ao seu redor.
Considerando a necessidade do equilíbrio delicado para que a razão pragmática de Cálicles atuando na assembleia dos cidadãos de Atenas não descambe para a razão tartufiana atuando para dar vazão aos vícios do indivíduo, como podemos ver a atuação do presidente Lula nas relações do Executivo Federal com o Congresso Nacional? A MP que estrutura a máquina pública, aprovada na Câmara dos Deputados, retirou atribuições do Ministério do Meio Ambiente, como o Cadastro Ambiental Rural e a Agência Nacional de Águas, tirando muito do poder de uma das ministras com mais credibilidade do governo, Marina Silva. Esse é um exemplo da voracidade dos deputados oportunistas a que se refere o editorial do Estado de São Paulo citado na abertura deste artigo. Os parlamentares não são responsáveis por elaborar e implantar uma política ambiental, mas fazem de tudo para atrapalhar quem queira fazê-lo, porque podem e o Executivo aceita porque não pode negar-se, sob o risco de não conseguir cumprir suas outras responsabilidades.
Será que Lula vai tentar pragmaticamente negociar com os próceres do Legislativo, como Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, David Alcolumbre, presidente da poderosa Comissão de Constituição e Justiça para atingir certos objetivos inegociáveis que seus eleitores esperam ver atingidos? Ou ele vai resvalar para o comportamento dos Tartufos da vida e agirá unicamente para viabilizar a manutenção do PT no poder, deixando que a agenda nacional seja ditada exclusivamente pelo Congresso, à base das emendas de relator, dos toma-lá-dá-cá sem nenhum compromisso com a governança do país? Em suma, Lula vai fincar o pé e tentar restaurar a iniciativa do Executivo ou vai deixar rolar o semiparlamentarismo ou semipresidencialismo, a depender do ponto de vista, para não se desgastar e levar tudo em banho-maria até as próximas eleições? Aguardemos os rumos da democracia tupiniquim, flutuando nas águas turvas entre Cálicles e Tartufo.