Sócrates não defendia nem a oligarquia nem a democracia. Não se identificava com nenhum dos dois lados. Seu ideal, tal como é apresentado de diferentes maneiras em Xenofonte e em Platão, e refletido no pouco que conhecemos dos outros socráticos, não era o poder exercido nem pela minoria nem pela maioria e sim – segundo Xenofonte – por “aquele que sabe”.
Trecho retirado do livro o Julgamento de Sócrates, escrito pelo jornalista americano Isidor Feinstein Stone (1907-1989)
[…] nenhum homem há de manter-se são e salvo, caso se oponha de forma legítima a vocês ou a qualquer outra multidão, e impeça a realização de inúmeras ações injustas e ilícitas na cidade; pelo contrário, para quem realmente luta pelo justo é inevitável agir em privado, e não em público, caso pretenda se manter são e salvo por pouco tempo que seja.
Fala de Sócrates na tradução de “Apologia de Sócrates” escrita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva
[…] sempre fui um indivíduo que não dá ouvidos a nenhuma outra coisa que me pertence senão àquele argumento que, submetido à reflexão, se manifesta a mim como o melhor.
Fala de Sócrates na tradução de “Apologia de Sócrates” escrita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva
Prezados leitores, na última vez em que estive neste meu humilde espaço, há quase um mês, eu proferi um julgamento a respeito do filósofo grego Sócrates (470-399 a.C.) qualificando-o de antidemocrático. Pretendo neste artigo esmiuçar a razão pela qual o homem condenado a beber cicuta em Atenas não morria de amores pelas discussões políticas na assembleia dos cidadãos que eram o cerne da prática democrática.
Em tais discussões, o objetivo do orador era convencer os cidadãos a tomar uma decisão política, seja declarar guerra a uma outra cidade-Estado, seja condenar alguém ao ostracismo ou exílio ou mesmo à morte se tivesse cometido ato atentatório à existência da pólis enquanto entidade soberana. Para tal convencimento, poderia o orador adular seus ouvintes para que tivessem boa vontade com o que ele tinha a dizer, implorar que o escutassem para suscitar a pena deles e até mesmo chorar para mostrar seu sofrimento e o quanto os ouvintes podiam ajudá-lo simpatizando com sua causa. No final das contas, o orador poderia sair-se vitorioso porque tinha sabido apelar às emoções dos cidadãos, independentemente da adequação da sua proposta aos fatos.
Ora, a proposta filosófica de Sócrates era totalmente diferente. Ele não estava em busca de persuadir ninguém a respeito de algo que poderia ser verdadeiro ou falso, mas que certamente repercutia na psiquê dos membros da assembleia. O fundamental para Sócrates não era buscar o que parecia verdadeiro, mas a verdade mesma, aquelas definições perfeitas, porque abrangentes e invariáveis, que eliminavam toda a inconsistência entre os fatos e reuniam as características comuns entre eles. Se tal busca chegasse a um beco sem saída, na aporia consistente na incapacidade de uma conclusão a respeito da identidade da coisa, isso não importava: era melhor admitir que não sabia, para manter-se fiel ao ideal de busca da verdade a qualquer preço, do que pretender que sabia para convencer as pessoas a seguir um determinado curso de ação.
Daí por que o método socrático, que jamais se comprometia a chegar a uma solução de qualquer jeito, não tinha vez na prática democrática: caso os cidadãos, reunidos em assembleia, fossem criticar toda e qualquer proposta de ação à maneira filosófica, sempre achariam uma desconformidade entre o que se propunha como vantajoso para a cidade e benéfico aos cidadãos e a realidade fática. Afinal, era sempre possível questionar: benéfico para quem particularmente? que benefícios eram vislumbrados especificamente?
Conforme o segundo trecho que abre este artigo, o próprio Sócrates reconhece que sua atuação como eterno questionador só poderia ocorrer na esfera privada. Afinal, nenhum político que discursasse na ágora ateniense e que aprendia as artes da retórica com os sofistas poderia apresentar uma definição satisfatória do que era justo e do que era injusto, já que o foco da sua atividade intelectual estava em manipular as massas para que ela concordasse com o curso de ação que o líder queria seguir para satisfazer seus interesses e seu apetite pela honra, pela glória e pelo poder. Ao passo que os diálogos empreendidos pelo filósofo com seus seguidores, em que ele colocava em xeque tudo aquilo que pensavam saber, apontando as contradições e inconsistências, eram o caminho possível para chegar às definições que para Sócrates identificavam a natureza das coisas e eram objeto do conhecimento por excelência.
Considerando que a arte da persuasão, que epitomiza a prática democrática, era considerada um esforço intelectual inútil e desprezado por Sócrates, interessado na busca da verdade, não admira que em seu livro I. F. Stone condene o filósofo como um antidemocrático: para o jornalista americano, ao rejeitar o governo da maioria, cujas propostas não atendem aos critérios rigorosos da verdade tal como concebida por Sócrates, este põe-se ao lado dos que defendem a ação voluntariosa e individual daquele que se opõe às maiorias persuadidas pelos oradores e que sabe porque busca as formas, isto é, a realidade imutável e absoluta além das contradições inerentes ao mundo real. Nesse sentido, o filósofo é culpado de atentar contra a democracia, pois para os seus conterrâneos tal defesa de um percurso intelectual unilateral e sem concessões trilhado por aquele que supostamente detinha o saber era um convite ao governo de um rei ou de um tirano.
Para Stone, a fim de livrar-se da condenação à morte, Sócrates deveria ter defendido não sua virtude como filósofo que buscava o que era o justo, mas seu direito à liberdade absoluta de expressão, mesmo que isso implicasse a liberdade de criticar a democracia, como ele fazia. Mas não foi isso que o filósofo fez: ele desafiou seus acusadores, acusou-os de praticar uma injustiça por quererem interromper o exame crítico por meio dos diálogos que Sócrates tinha com seus discípulos. Em assim fazendo, ele acabou sendo condenado.
Prezados leitores, à luz das falas de Sócrates na Apologia e da interpretação adotada por I. F. Stone, qual a definição perfeita de Sócrates: mártir da democracia ou algoz da democracia? Ou tais definições apresentam tantas complexidades que qualquer praticante do método socrático poderá lhes apontar as inconsistências? De qualquer forma, uma coisa é certa: o julgamento de Sócrates no século IV a.C. – suas razões e o motivo da sua condenação – dão margem para a reflexão sobre nossa prática democrática em pleno século XXI. Afinal, como não considerar relevantes as críticas de Sócrates à paixão das massas quando vemos o mesmo povo brasileiro elegendo Jair Bolsonaro para livrar-se de Lula e depois elegendo Lula para livra-se de Bolsonaro? Dialoguemos e reflitamos, como propunha o filósofo.