Os cidadãos conseguem reconhecer a boa-fé mútua e o desejo de justiça, mesmo que ocasionalmente não haja acordo sobre questões constitucionais e certamente sobre muitas questões de política. Mas a não ser que existisse uma perspectiva comum, cuja premissa diminuísse as diferenças de opinião, o raciocínio e a argumentação não teriam razão de ser e não teríamos fundamento racional para acreditar na robustez das nossas convicções.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)
O Ministério Público é uma instituição do Estado. Sua primeira função é a defesa da ordem democrática, da Constituição. A gente não serve ao governador, nem ao procurador-geral. As polícias também. Eu não posso entender, qualquer que seja o presidente, seja Bolsonaro ou Lula, utilizarem, às vezes, a “minha” polícia. A polícia é do Estado. […] Agora, falar que a polícia inventou essa operação está ofendendo a mim e ao Ministério Público.
Trecho da entrevista do promotor Lincoln Gakiya, maior especialista no Primeiro Comando da Capital do país, ao jornal o Estado de São Paulo em 26 de março
Prezados leitores, na semana passada eu argumentei, com base na leitura de Uma Teoria da Justiça, que em uma sociedade justa os homens devem ter direitos iguais porque todos nós temos a aptidão para ter um senso de justiça, de reconhecer o que é certo e o que é errado e de tentar colocar isso em prática, seja agindo corretamente em relação aos outros membros da sociedade, seja tendo seus direitos reconhecidos pelos outros. A garantia de direitos iguais torna o homem livre para perseguir seus objetivos de vida, na certeza de que não será sacrificado no altar das considerações utilitaristas.
Nesta semana, farei a tentativa de explorar mais as outras características que Rawls imputa ao homem para que este escolha, na posição original da visão contratualista, que todos tenham direitos iguais à busca da realização dos seus planos individuais. Minha meta é chegar ao conceito de objetividade e de como ele é importante no funcionamento da sociedade bem ordenada e mostrar-lhes a falta dele em terras tropicais.
Como bom seguidor das ideias do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), John Rawls adota a premissa de que o ser humano é por natureza racional, livre e autônomo. No momento imediatamente anterior à elaboração do contrato original, esse ser autônomo escolhe determinados princípios de justiça sem levar em conta sua situação pessoal, o quanto de recursos materiais de que ele dispõe, quais são suas aptidões físicas e intelectuais. Em assim fazendo, ele se coloca deliberadamente em uma posição de igualdade com os outros membros da sociedade, escolhendo princípios de distribuição de direitos e obrigações que são convenientes para todos, porque lhes oferecem a melhor oportunidade a longo prazo de concretizar seus objetivos de vida.
Livre para ignorar as diferenças individuais, sua história de vida e seus valores específicos em prol do valor maior que é a elaboração das bases de uma organização social em que ele possa dar e receber justiça, esse ser autônomo chega a um estágio em que o que é certo e o que é errado é determinado pelo acordo dos pares, que faz com que suas visões convirjam para princípios morais comuns. Cada um dos membros da sociedade consegue colocar-se no lugar do outro e ver as coisas sob uma perspectiva não marcada pelos interesses individuais, mas sim marcada pelo interesse em manter um grupo de seres livres e tratados com justiça.
Essa é a objetividade de Rawls, que permite a convergência das opiniões, conforme ele explica no trecho que abre este artigo. Os seres livres decidem chegar a um consenso sobre certos princípios fundamentais da organização da sociedade, o que permite que haja um campo em comum. Nele, ideias podem ser trocadas e argumentos podem ser propostos que serão entendidos e não serão maliciosamente deturpados ou interpretados fora de contexto, pois todos nessa sociedade comportam-se de maneira leal em prol do objetivo de concretizar uma sociedade justa em que cada indivíduo reconheça os direitos dos outros na justa expectativa de que os outros irão lhe reconhecer seus próprios direitos.
Portanto, na sociedade de homens autônomos e racionais de Rawls, há uma conjunção de senso de justiça compartilhado e boa-fé na concretização desse senso de justiça que faz com que em larga medida os homens atuem objetivamente, isto é, sob certa medida desprendendo-se da sua perspectiva individual e enfatizando o que há em comum em termos de princípios de justiça que permitam que cada um tenha uma porção equitativa dos bens sociais. Sob essa perspectiva, sem objetividade não há justiça possível, pois não haveria bases sólidas sobre as quais ancorar nossos julgamentos sobre o que dar e retirar de quem, sem que eles fossem denunciados como idiossincráticos e portanto, falsos.
Essa falta de objetividade pode ser vista na repercussão sobre a descoberta de um plano do Primeiro Comando da Capital para sequestrar e assassinar autoridades, entre as quais o senador e ex-juiz Sérgio Moro. O primeiro indício desse plano foi detectado pelo promotor Lincoln Gakiya, membro do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de São Paulo em meados de 2022, ao interceptar conversas suspeitas. Diante de tal indício, o promotor alertou o procurador-geral de Justiça do Estado que iniciou uma operação no Ministério Público. No dia 30 de janeiro, a informação sobre o plano de assassinato foi dada a Moro e a sua família e o caso foi encaminhado à PF do Paraná, que em 45 dias conseguiu desvendar os detalhes do plano.
A repercussão consistiu no comentário do presidente Lula de que essa operação de sequestro e assassinato de Sérgio Moro e de sua família seria uma armação de Moro. É sobre essa declaração que o promotor Lincoln Gakiya faz as observações que abrem este artigo. Considerar que é uma armação do senador recém-eleito pelo Paraná, tendo em vista que o Ministério Público de São Paulo e a Polícia Federal do Paraná investigaram o plano do PCC, é partir do pressuposto de que nossas instituições são partidárias, um saco de gatos formado por grupos que apoiam tal ou tal visão política e fazem uso do local em que trabalham para fazer tal visão prevalecer. É uma falta de fé que espanta o promotor, que presume algo completamente diferente: que nossas instituições são do Estado, não de grupos ideológicos, e portanto, republicanas e objetivas.
Prezados leitores, essas declarações infelizes de Lula conjugadas àquelas sobre o fato de na prisão ele só pensar em vingar-se de Moro, levam à seguinte pergunta: será que Lula candidatou-se a presidente só para marcar pontos com Moro, para mostrar ao seu inimigo que ele não havia sido derrotado? Será que a versão 3.0 de Lula no Palácio do Planalto não tem nada a propor de construtivo para o país a não ser um acerto de contas mais ou menos sutil com seus algozes da Lava-Jato? Aguardemos as próximas picuinhas e no entrementes sonhemos com a justiça objetiva de Rawls concretizada por homens autônomos e racionais.