Estamos mais dispostos a enfatizar nossa boa sorte agora que essas diferenças são trabalhadas de modo a serem vantajosas para nós, ao invés de ficarmos desmotivados pensando em quão melhor condição estaríamos se tivéssemos chances iguais às de outros, se todas as barreiras sociais tivessem sido removidas. É mais provável que a concepção de justiça, se ela for realmente eficaz e publicamente reconhecida como tal, terá mais probabilidade do que suas concorrentes de transformar nossa perspectiva sobre o mundo social e nos reconciliar com as disposições da ordem natural e as condições da vida humana.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)
“Nós acreditamos que cada pessoa que entra em nosso estabelecimento é um gênio que merece encontrar uma vocação que mudará o mundo. Se você não acredita nisso, você não tem direito de estar dentro de uma Acton Academy,” Sandefer disse. “E isso significa cada pai ou mãe, cada guia … [e] cada estudante. Sandefer logo observa que sua definição de gênio implica mais do que a inteligência de uma pessoa. “Uma das grandes lições a respeito da Acton Academy é que o QI importa … mas a perseverança, a coragem e a gentileza importam mais,” ele disse.
Trecho retirado do site www.phylantropyroundtable.org a respeito de Jeff Sanderfer, o cofundador de uma rede de escolas inovadoras para alunos da pré-escola ao ensino médio, a Acton Academy, que estimula os alunos a serem estudantes curiosos e independentes para a vida toda.
Prezados leitores, na semana passada eu abordei parte das razões que John Rawls dá para considerar que sua concepção de justiça é superior à concepção utilitarista, porque ela facilita o comprometimento de todos os indivíduos com a ordem social, fazendo com que obedeçam mais facilmente e por mais tempo as regras porque sabem que o modo como a sociedade está organizada permite que eles obtenham a satisfação dos seus interesses, os quais não serão sacrificados em prol de um bem maior. Sob os princípios da justiça como equidade, todos têm direitos iguais, independentemente das suas habilidades naturais e adquiridas. Nesta semana, meu objetivo é explorar a resposta que John Rawls dá à pergunta: por que dar direitos iguais a todos? O que há na natureza humana que fundamenta a igualdade de direitos? A resposta a essa pergunta tornará mais clara a contraposição da justiça como equidade à justiça como balanço geral do bem gerado para a sociedade. Com isso poderei ilustrar como essa concepção se concretiza nos Estados Unidos, a terra de John Rawls, no campo educacional.
Para Rawls, os homens devem ter direitos iguais porque todos têm uma personalidade moral, que se distingue por duas características: a primeira é a capacidade de ter uma concepção do que é bom para si mesmo e de elaborar um plano racional para conseguir atingir esse bem; a segunda característica, mais ou menos desenvolvida, é um senso de justiça, isto é, uma capacidade e um desejo de aplicar os princípios de justiça, que foram estabelecidos na posição original, momento em que os indivíduos se reuniram para estabelecer as regras de distribuição dos bens e dos ônus do convívio em sociedade. No esquema de Rawls, imbuído dessa personalidade moral, o individuo estabelecerá como um dos princípios da justiça, conforme já mencionado anteriormente, o princípio da diferença, que garante que a melhora da situação de um membro da sociedade não vai piorar a situação de outro membro da sociedade, o qual também terá algum benefício dessa mudança nas circunstâncias.
Daí que o homem que é capaz de dar justiça, isto é, de reconhecer o direito dos outros, tem ele mesmo o direito de receber justiça, isto é, de ver seus direitos reconhecidos. Não porque esse homem tenha um valor que foi reconhecido por seus pares em termos de capacidade intelectual ou física, que faz com que ele seja capaz de gerar benefícios para a sociedade. Mas simplesmente porque ele tem a capacidade de aderir às regras de funcionamento da sociedade. E de acordo com o trecho que abre este artigo, ele o faz mesmo quando ele não teve todas as oportunidades de melhoria da sua situação e mesmo quando ele não é dotado de todas as qualidades que lhe permitiriam ter sucesso na vida. Pelo fato de o princípio da diferença vigorar, ele tem mais disposição de aceitar as diferenças de resultados, o fato de que alguns serão mais talentosos do que ele e mais bem-sucedidos do que ele, inclusive porque alguns nascerão em famílias que lhes proporcionarão mais condições de concretizar seus objetivos.
Essas diferenças não importam tanto em uma sociedade regida pelo princípio da justiça como equidade quanto importariam em uma sociedade regida pelo princípio utilitarista, pois os menos dotados material e intelectualmente terão seu lugar ao sol, terão a liberdade de perseguir seus objetivos de vida, independentemente de um cálculo do quanto de benefício estão gerando para a sociedade. Mesmo porque, de qualquer forma, o exercício da liberdade de escolher seu destino e de aderir às regras da sociedade é em si um bem tanto para o indivíduo que o faz quanto para a sociedade, cuja organização fica mais estável assim, por facilitar a adesão de todos, como tentei humildemente mostrar no artigo “Utilidades domésticas – e justas”, ao contrapor a abnegação de alguns, necessária na concepção utilitarista, à satisfação do interesse próprio sob a concepção contratualista de Rawls.
E como essa visão de que todos têm direitos iguais a perseguir seus objetivos de vida se concretiza no campo educacional? Não é por meio da imposição da meta de igualdade de resultados para todos, independentemente das suas diferenças. Uma educação que siga os princípios da justiça fundada na liberdade e nos direitos iguais reconhece as diferenças entre os indivíduos, mas faz delas fonte de riqueza e diálogo e não fonte de expiação de culpas e vinganças por privilégios naturais ou adquiridos.
Assim ocorre na rede de escolas fundada pelo empreendedor americano Jeff Sanderfer, a Acton Academy, conforme mostra o trecho que abre este artigo: os alunos são tratados como gênios não porque realmente tenham alto QI, mas porque acredita-se que cada um deles, na medida das suas possibilidades e vocações, possa dar sua contribuição se lhes for dada a liberdade de construírem seu próprio conhecimento. E para isso os professores da Acton Academy seguem o método socrático de fazerem perguntas aos alunos, sem que jamais eles deem a resposta: o objetivo não é que o estudante descubra a verdade possuída pela autoridade educacional, mas que ele, por meio das interações com seus colegas e do seu esforço individual, chegue a uma conclusão fazendo coisas, resolvendo problemas práticos, tomando decisões sobre casos em que há diferentes interesses em jogo.
Prezados leitores, eu jamais visitei uma escola da Acton Academy e o que eu sei a respeito dela baseia-se em um podcast de seu fundador. Pode ser que os ideais preconizados por ele não sejam colocados em prática sempre. De qualquer forma, é reconfortante saber que sob a inspiração da justiça fundada na liberdade e no respeito às diferenças, a escola possa ser o abrigo dos gênios compreendidos na sua especificidade, na contribuição única que possam dar e não apenas um lugar de obediência às autoridades e de cumprimento de formalidades burocráticas como notas e provas. Vida longa ao projeto libertário de Jeff Sanderfer!