Caso os motivos para as injunções morais sejam esclarecidos em termos das demandas justas dos outros, essas restrições não nos fazem mal, mas são vistas como compatíveis com nosso próprio bem. […] A tradição racionalista apresenta um cenário mais feliz, já que ela sustenta que os princípios da razão e da justiça surgem da nossa natureza, não estando em conflito com nosso bem, ao passo que a outra versão da realidade não incluiria tal garantia.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)
O Presidente russo, Vladimir Putin, fez um discurso de alerta nuclear ao Ocidente a respeito da Ucrânia, suspendendo o tratado bilateral de controle de armas nucleares, anunciando que novos sistemas estratégicos estão prontos para o combate e informando que Moscou pode retomar os testes nucleares.
Notícia veiculada pela agência Reuters em 21 de fevereiro
Prezados leitores, na semana passada eu abordei o princípio aristotélico, tal como definido por John Rawls, e expliquei como ele é usado pelo filósofo americano para fundar uma sociedade de liberdades e igualdade jurídica e de oportunidades para todos, pois ele permite criar uma sociedade bem ordenada na qual cada um tem a oportunidade de desenvolver seus talentos, ser reconhecido pelas suas realizações, e assim de estar disposto a reconhecer as realizações dos outros membros da sociedade, estabelecendo-se uma troca vantajosa entre os cidadãos que leva à cooperação e à construção de uma sociedade que funciona para todos. Hoje terei como foco a questão colocada por Rawls para que tal sociedade bem ordenada seja colocada em prática.
Como inculcar em cada indivíduo um sentimento moral de forma que seja assegurada uma estrutura básica estável que permita que a justiça seja feita? Esse problema se coloca porque se cada um das pessoas que formam o corpo social não está disposta a agir em obediência às leis, não há como esse ciclo virtuoso de busca de autorrealização individual, de reconhecimento e de cooperação social se concretizar: se as pessoas não estão psicologicamente dispostas a agir de acordo com as regras e dar a cada um o que lhe cabe, elas não vão se importar com a opinião que os outros têm delas e por isso não vão se comprometer a dar o melhor de si em prol de todos. A falta de um senso interior de justiça nos aparta da sociedade, impedindo-nos de criar um vínculo com os outros atores sociais e de estabelecermos interesses e projetos comuns.
Rawls explica que há duas vertentes clássicas de explicação de como o homem adquire o sentimento da moralidade, uma empirista derivada do filósofo escocês David Hume (1711-1776), e a outra racionalista, derivada do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Para os empiristas, os homens devem ser treinados para um comportamento moral porque tal comportamento é contrário às suas inclinações. Não temos motivos para agir de maneira correta se formos nos guiar por nossos instintos e desejos e para fazê-lo é preciso que nos sejam inculcados motivos na forma de recompensas e punições que nos levem a trilhar um caminho que naturalmente não escolheríamos. Assim, escolhemos obedecer por medo e para aplacar nossas ansiedades relacionadas a possíveis punições e desejos não satisfeitos.
Para os racionalistas, vertente a que adere Rawls, o sentimento moral se coaduna com a natureza do homem, conforme explica o trecho que abre este artigo. Por um processo de maturação psicológica fundamentado na relação saudável com os pais, a criança obedece às regras que lhe são impostas principalmente porque ela se sente amada e acolhida por aqueles que cuidam dela, os quais sentem prazer em relacionar-se com ela e em tudo o que ela faz. Sentindo-se protegida e confiando nos adultos que cuidam dela, a criança acaba os vendo como modelos a serem seguidos, e não só aceita de bom grado as proibições e os comandos, como os torna fontes de desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e emotivas: é nessa estrutura, limitada pelas regras dos seus protetores, que a criança adquire a confiança para experimentar, para errar, para aprender e para atingir objetivos que serão apreciados pelos pais.
Sob essa perspectiva, as regras morais não são uma superestrutura imposta de maneira coativa ao indivíduo por meio de estratagemas como castigos pelo mau comportamento e recompensas pelo bom comportamento que mal e mal escondem a natureza egoísta do ser humano. Ao contrário, as regras morais são uma camada a mais que se integra plenamente à personalidade da pessoa, permitindo-lhe florescer como indivíduo no seio da sociedade, relacionar-se com seus pares, ser respeitado e respeitar os outros.
Em que pese Rawls adotar essa postura racionalista de que o ser humano é capaz de desenvolver seu senso moral porque ele percebe que isso garante o seu bem no longo prazo, dando-lhe a oportunidade de atingir seus objetivos de vida, ele também admite que o medo das punições desempenha um papel na psiquê humana. De sorte que temos uma situação em que o homem obedece porque é forçado a fazê-lo, mas também porque em fazendo gozará dos benefícios de uma sociedade em que as regras são seguidas e a justiça prevalece, isto é, gozará das liberdades e oportunidades que garantem a prosperidade de todos.
Prezados leitores, essa explicação sobre o ideal racionalista de Rawls, herdeiro não só das ideias de Kant, mas do psicólogo suíço especialista no desenvolvimento infantil Jean Piaget (1896-1980), pode nos servir para entender o momento que estamos vivendo que, segundo o ex-diplomata soviético e conselheiro de Gorbatchev, Vladimir Fedorovski, é o momento mais dramático da história da humanidade, pois as duas maiores potências militares estão se enfrentando, tendo como palco a Ucrânia, e não estão dispostas a conversar.
De fato, conforme o trecho que abre este artigo, Putin hoje anunciou a retirada da Rússia do último tratado de controle de armas que ainda vigia entre os dois países, ao mesmo tempo que em Kiev, o Presidente Joe Biden anunciou que os Estados Unidos jamais aceitarão uma vitória russa na Ucrânia. Os otimistas creem que a racionalidade prevalecerá e que, ante a perspectiva de um holocausto nuclear que destruirá todos, as partes decidirão conversar, estabelecer regras de respeito mútuo pela segurança de cada uma delas para acabar com a carnificina na Ucrânia e garantir a paz para todos. Os realistas pessimistas consideram que estamos a um nano segundo da irracionalidade e que, a falha do direito internacional em estabelecer uma instância supranacional e imparcial com poder de polícia permite que a força bruta acabe prevalecendo e haja agressões entre os países.
Será que um dia chegaremos a concretizar o ideal kantiano do concerto das nações, que estabelece um pacto de convivência em prol do bem comum, da segurança e das relações cordiais entre os povos? Ou sempre estaremos sujeitos aos efeitos das lutas entre as superpotências? Oxalá, tenhamos tempo de refletir sobre essas questões antes do final deste ano.