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O Clube do Gato

Posted by on 15/02/2023

[…] em que pese ser verdade que a não ser que as nossas iniciativas sejam apreciadas pelos nossos parceiros, é impossível para nós mantermos a convicção de que elas valem a pena, também é verdade que os outros tendem a valorizá-las somente se o que fazemos inspira neles admiração ou lhes dá prazer. […] as condições para pessoas que respeitam a si mesmas e umas às outras parecem exigir que os planos comuns sejam racionais e complementares: eles se valem das habilidades adquiridas pela educação e despertam em cada um um senso de domínio, e eles se encaixam mutuamente em um único esquema de atividades que todos podem apreciar e aproveitar.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

 

Um morador do Complexo da Mangueirinha, em Duque de Caxias, usuário de “gato” há dois anos, diz saber que o furto de energia acaba onerando quem paga conta de luz, mas resolveu ficar do outro lado para aliviar o bolso. “ou você paga a conta por causa do gato dos outros ou adere para não sofrer também.

Trecho retirado do artigo “A conta do crime – furto de energia em áreas violentas afeta finanças de distribuidoras no Rio, publicado no jornal O Globo em 12 de fevereiro

“Todos os homens que diferem entre si para pior, no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal, são naturalmente escravos, e para eles nada melhor do que estarem sujeitos à autoridade de um senhor.”

Trecho retirado do livro “História da Riqueza no Brasil”, de Jorge Caldeira, citando trecho da “Política”, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)

    Fazer do meu jeito, fazer do nosso jeito. Este foi o título do meu humilde artigo na semana passada para referir-me à racionalidade deliberativa de John Rawls, isto é, à capacidade de um homem que participa de uma sociedade justa de estabelecer seus objetivos de vida e de traçar seus planos de acordo com as circunstâncias que o rodeiam para conseguir atingi-los da melhor forma possível, nem que isso signifique fazê-lo de maneira parcial. O que importa é a liberdade tanto de poder colocar em prática seus valores, quanto de ter a oportunidade de executar os planos. Nesta semana, abordarei o princípio aristotélico, nome dado por Rawls a um princípio por ele formulado com base nas ideias do filósofo grego. Meu objetivo é utilizá-lo para iluminar um aspecto da nossa sociedade tropical.

    Como mostra o trecho tirado do livro de Jorge Caldeira, Aristóteles acreditava na desigualdade intrínseca e irredutível dos seres humanos: alguns nasceram para comandar, outros para ser comandados. Essa máxima serviu para justificar, desde a Antiguidade até o Antigo Regime na Europa, o estabelecimento de leis diferentes para os diferentes estamentos sociais: se os homens eram desiguais e com diferentes níveis de capacidade, era preciso refletir na ordem jurídica tal desigualdade e o ideal de justiça era tratar os indivíduos desigualmente, segundo sua qualidade.

    Essa qualidade tinha um duplo sentido: era tanto a característica do indivíduo, seu pertencimento a uma certa classe social, a uma certa profissão, a uma certa família e a uma certa religião e era também a característica do indivíduo em termos de ter certas habilidades que lhe permitiam realizar algo bom. É deste segundo sentido que John Rawls se vale para formular seu princípio aristotélico, conforme o trecho que abre este artigo. Princípio este que ele não utiliza para fundamentar a justiça da desigualdade jurídica, mas a contrário a justiça da igualdade e liberdade.

    Se há homens que nascem com determinados recursos físicos e intelectuais, isso lhes permitem, uma vez tais recursos sendo cultivados pela educação e pelo treinamento, atingir um nível de excelência naquilo que fazem no ramo de atividade que escolheram. Quanto maior for a dificuldade do empreendimento, mais satisfação o indivíduo dotado obterá dele: as sutilezas e complexidades envolvidas o motivarão a perseguir o objetivo, não só porque ele tem a capacidade de chegar lá, mas porque em lá chegando ele poderá mostrar os frutos do seu trabalho aos seus pares, que apreciarão a qualidade do que foi feito, usufruirão dessa qualidade e reconhecerão o autor da obra.

    Em uma sociedade livre, que dá oportunidades aos cidadãos, cada indivíduo, dotado de suas capacidades específicas, conseguirá colocar seus planos de vida em prática e realizará algo, que será apreciado, se não por todos os membros da sociedade, ao menos por uma parcela deles que se identificam com o realizador porque compartilham valores semelhantes e assim conseguem apreciar a qualidade do que ele fez. Tudo correndo bem, cria-se um círculo virtuoso: uma sociedade constituída de indivíduos que têm a chance de desenvolver suas habilidades inatas e que se complementam mutuamente, beneficiando-se das criações dos seus pares, estimulando-as pela apreciação e reconhecimento dos seus respectivos criadores.

    É sob essa perspectiva que Rawls dá uma interpretação democrática à ênfase aristotélica na excelência das realizações humanas e na importância de o ser humano ser reconhecido pelos seus méritos para que ele tenha a motivação de se esforçar e de perseguir o melhor que ele pode fazer nos limites das suas capacidades. A sociedade de Rawls é justa porque ela contempla as diferentes necessidades dos seus membros, dando-lhes a oportunidade de autorrealização e de autorrespeito, independentemente de serem ricos ou pobres, da sua origem étnica ou social. Os homens são diferentes, mas a diferença humana não é motivo para colocar no indivíduo uma etiqueta jurídica de escravo ou senhor que lhe condene a permanecer na mesma posição social sua vida inteira. Ela é uma oportunidade para que todos, criando coisas, cada qual no seu quadrado contribua para o total das realizações da sociedade.

    Todo esse introito sobre como a busca da excelência pode existir num ambiente de liberdades fundamentais para todos e contribuir para reforçar tais liberdades pelo estímulo à dignidade humana, serve para eu explorar um tópico que ilustra o contrário desse círculo virtuoso descrito por Rawls, qual seja a busca sistemática que fazemos no Brasil em certas áreas pelo quanto pior melhor. Refiro-me especificamente ao problema das ligações clandestinas de eletricidade, problema descrito no jornal O Globo, conforme o trecho que abre este artigo.

    Para citar alguns números: a média de perdas por furto de energia é de 14,8% nas distribuidoras do país. Em 31 cidades do Estado do Rio de Janeiro ela é de 54%. A indústria do gato está consolidada por lá: há os técnicos que prestam o serviço de ligação clandestina e lucram, há os consumidores que querem estar do lado dos espertos e não pagar pela luz, há as milícias que cobram uma taxa dos consumidores, menor que as da Light e da ENEL, as empresas atuantes no mercado fluminense. Aparentemente todos saem ganhando com o gato generalizado porque as normas regulatórias permitem às distribuidoras repassar as perdas às tarifas. Os únicos perdedores são os otários dos que continuam a contribuir para a viabilidade da concessão pagando suas contas em dia.

    Mas um dia o castelo de areia vai se desmilinguir. Há um limite de 40% das perdas que as empresas podem repassar. Segundo o artigo no Globo, a Light não está gerando caixa suficiente para manter a sustentabilidade das suas operações. E as metas regulatórias de qualidade de serviços, de preços de tarifas, de fornecimento ininterrupto de energia estão se inviabilizando para empresas impotentes ante a legião dos usuários de gatos como o morador de Duque de Caxias que quer aliviar seu bolso à custa do bolso alheio.

    E quando o castelo desmilinguir haverá a encampação dos serviços públicos de energia. As empresas terão fracassado em cumprir suas obrigações de concessionárias e o Estado terá que cobrir o rastro de prejuízo deixado. No final das contas, mesmo os espertos que terão dado calote por muitos anos perderão, porque por mais lisos que sejam eles pagam impostos e arcam com as despesas estatais. E com infraestrutura precária em termos de energia não há muito incentivo para que empreendedores abram negócios, gerem empregos e deem assim oportunidades a que os usuários de gato reincidentes mostrem seu valor em uma atividade produtiva. Eles economizam um pouco no curto prazo e perdem rios de dinheiro em termos de perdas de chances econômicas no logo prazo. É o círculo vicioso da corrida para o fundo do poço: sem infraestrutura, sem empresas, sem emprego, sem receitas tributárias, sem investimentos públicos, sem educação, sem oportunidades, sem consecução de objetivos pessoais.

    Prezados leitores, oxalá um dia no Brasil, ao invés de insistirmos em ser parte do Clube do Gato do furto de energia tenhamos a motivação e a racionalidade para sermos parte do clube dos seguidores do princípio aristotélico do quanto mais bem feito por um melhor para cada um e para todos.

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